Torto Arado + 7 prisioneiros

Livro de Itamar Vieira Junior + filme de Alexandro Morrato, Brasil 2019, 2021

Duas  obras que abordam o mesmo tema porém são muito distintas. Ler o romance e assistir ao filme (ou vice-versa) cria uma dimensão interessante de reflexão e olhar sobre a espécie humana e sobre o Brasil,  no contexto do tema que ambas tratam.

Torto Arado nos leva para o interior baiano. Matas, rios, campos, roças e seres míticos são os elementos que compõem um cenário que parece aferrado ao passado. Um passado de grandes fazendas e senzalas. A escravidão foi legalmente abolida, há anos, mas a servidão, uma versão hipócrita da mesma, reina absoluta. Os lavradores, em troca de seu trabalho podem erguer uma casa de barro e ter uma pequena roça num pedaço de terra que cultivarão em seu tempo livre. Trabalham de sol a sol e de domingo a domingo. Podem ir embora, se o desejarem, e podem ser mandados embora à vontade do patrão. 7 Prisioneiros começa em um cenário parecido, um ambiente rural interiorano, mas imediatamente desloca seus personagens para a urbe e de lá não sai mais. Os jovens que deixam suas casas em busca de uma vida melhor ignoram o fato que foram “comprados”. Parte desse dinheiro é dado às suas famílias como um adiantamento, uma promessa dos proventos que terão na grande cidade, a outra parte fica com o aliciador. Ao chegarem em SP os rapazes têm seus documentos sequestrados e terão que trabalhar para pagar o parco alojamento e a comida fornecida pelo patrão, mais o valor investido em sua compra. Ao se rebelarem, dão-se conta que são cativos no seu local de trabalho.

Vieira Junior foca no universo feminino: Belonísia e Bibiana, as duas irmãs que conduzem a trama (como protagonistas e narradoras), a mãe (Salu), a avó (Donana) e uma série de outras mulheres desenham uma linhagem de dor e coragem ao longo de gerações. Esse ponto de vista feminino não ignora o papel do homem e destaca  Zeca Chapéu Grande e Severo como figuras centrais na vida da comunidade de Águas Negras. Já Morrato aborda  o universo masculino. Seus protagonistas e o antagonista são todos homens, mas a figura da mãe tem papel importante nas relações e conflitos travados nesse universo.  

As duas obras traçam caminhos opostos nos processos que abordam. Apesar de todo o calvário que marca os personagens, Torto Arado descreve como se forja uma comunidade, como se cria uma consciência através do fortalecimento do coletivo calcado na solidariedade, na cultura e na fé que argamassam essa união. 7 prisioneiros, na contramão, trata de desagregação, da vitória do egoísmo, do  salve-se quem puder numa cidade de ferro e concreto onde não há lugar para a empatia, muito menos para os encantados de Torto Arado. Dane-se o outro e viva eu, parece ecoar do labirinto de ruas e esquinas e corroer a frágil união do grupo, a consciência coletiva e o ímpeto de lutar pelo que é certo.

As duas obras desenham faces distintas do mesmo mal, o trabalho escravo, mal que o Brasil não conseguiu erradicar  em quinhentos anos e segue carcomendo o tecido social na surdina, no subterrâneo. Lançar esse tema à superfície já é um grande mérito dessas obras impactantes. Torto Arado ganhou o Premio Leya, o Jabuti para Romance literário e o Oceanos. Foi publicado em Portugal pela editora Leya e no Brasil pela Todavia.  7 Prisioneiros, com Rodrigo Santoro e Christian Malheiros nos papeis principais, foi premiado no Festival de Veneza e está licenciado pela Netflix.