A Casa do Baralho, episódio de hoje: Um Cabo e um Soldado

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.

Um cabo e um soldado estão passeando em Brasília. Já subiram na Torre da Televisão e viram a cidade de cima. Não acharam parecida com um avião. Foram na catedral, acharam meio esquisita. Circularam pela esplanada dos três poderes que o presidente B planeja transformar na esplanada do poder único, e tiraram selfies. Mas na real, estão decepcionados com a capital do país. Imaginaram ela mais divertida. Entediados, pensam no que fazer.

— E se a gente fechasse o STF? — sugere o soldado.

— Boa! — anima-se o cabo, precisam mesmo de um pouco de ação. — Bora lá.

Dirigem-se ao prédio desenhado pelo Niemeyer, que projetou tanta coisa arrojada, tanto prédio fora da casinha, mas até ele ficaria espantado com o Brasil atual. Na entrada encontram-se dois engravatados com porte de seguranças.

— Pois não? — perguntam aos militares em licença.

— Aqui é o Superior Tribunal Federal? — devolvem a pergunta com outra. Uma manobra diversionista.

Os seguranças confirmam meneando a cabeça.

— A gente queria entrar.

— Sinto muito. Impossível.

— Impossível, como assim?

— O STF está fechado para visitações, devido a medidas sanitárias. Semana passada mesmo vieram dois deputados, um deles mais marombado do que a gente e que estava sendo julgado. O outro era o filho do presidente, aquele mesmo que falou que bastava um cabo e um soldado pra fechar o STF, lembram? Mas nem eles puderam entrar. Só os Juízes e advogados dos casos. E hoje, nem isso. Os ministros suspenderam tudo, se fecharam lá dentro, deliberando…

— Quer dizer que tá fechado?

Os seguranças confirmam, meneando as cabeças.

— Lacrado mesmo?

— Podes crer.

Os militares se entreolham desacorçoados. Chegaram tarde. Alguém se adiantou e fez o serviço por eles.

— E agora, o que a gente faz? — resmunga o cabo. O segurança, com peninha deles, sugere:

— Os deputados da semana passada, eles também ficaram com essas caras desenxabidas. Aí foram falar com o presidente, logo ali no Palácio do Planalto. Foram pedir uma graça.

— Uma graça?

— Uma graça presidencial.

Os valorosos soldados não fazem ideia do que seja isso, mas parece bem divertido.

— Ah, e será que lá a gente consegue entrar?

— Vocês são vacinados?

— Negativo.

— Usam máscara para entrar em locais fechados?

— Negativo!

— Fizeram exame para Covid?

— Negativo.

— Fizeram o exame e deu negativo, ou negativo para a pergunta se fizeram o exame?

— Negativo. Nem mortos a gente faz o exame.

— Então podem ir que vocês, lá, serão bem recebidos.

Enquanto isso, fechados no prédio da Justiça, os ministros seguem debatendo como reagir à nova afronta do presidente em forma da graça presidencial, ou seja, o indulto relâmpago ao deputado que eles recém haviam condenado após ter atacado o STF veementemente. Como se não bastasse, o Ministério da Defesa emitiu nota classificando como ofensa grave a fala do ministro do STF dizendo que as forças armadas estão sendo orientadas a desacreditar o processo eleitoral. Em meio ao caloroso debate, nenhum dos excelentíssimos faz a reflexão que não estariam sentados agora, com mais essa bomba nas mãos, se houvessem reagido à altura quando o filho do presidente (que ainda nem era filho do presidente)  vaticinou que para fechar o STF nem precisava de um jipe, bastava mandar um cabo e um soldado.

Seguirá B ultrajando cada vez mais o STF, neste ano de eleições? Será esse mais um ensaio para o  golpe, caso seja derrotado nas urnas? Seguirão o cabo e o soldado procurando diversão em Brasília? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

A Sombra de Stalin

Filme de Agnieszka Holland, Polônia, Ucrânia, Reino Unido 2019

Mr. Jones é o nome original de A Sombra de Stálin, da cineasta polonesa Agnieszka Holland. Seu protagonista é o jovem Gareth Jones, um talentoso linguista gaulês que chegou a trabalhar como conselheiro para assuntos internacionais de Lloyd George, ex-primeiro ministro britânico, e depois foi jornalista. Mr. Jones é também o nome do fazendeiro na alegoria política de George Orwell, A Revolução dos Bichos, que retrata como a revolução bolchevique acabou traindo seus princípios e sua razão de ser, por um projeto ditatorial totalitário de um de seus articuladores. Agnieszka cria uma ponte ficcional entre dois personagens reais, mas o encontro de Jones com Orwell e a influência dos seus relatos sobre o romance alegórico de George têm menor importância no filme que trata de duas grandes questões: a terrível fome imposta aos camponeses da União Soviética no início da década de 1930, principalmente aos ucranianos, e o jornalismo verdadeiro.

O filme tem alguns problemas de narrativa, principalmente a falha em esclarecer  o processo que levou à Ucrânia ao desastre da fome: o programa quinquenal, a coletivização forçada dos camponeses e o valor da exportação do trigo para a industrialização da União Soviética. Há historiadores que apontam também uma intenção de dobrar o espírito nacionalista ucraniano, e que a fome não foi consequência desastrosa de uma política mal conduzida e sim o sucesso de uma política deliberada de extermínio e dominação. O filme, no entanto não entra nesta seara, embora esta seja a ponta do fio do novelo que leva à investigação de Jones, e opta por impactar através das terríveis cenas da fome e  do esforço do governo bolchevique para escondê-la, prejudicando a solidez do roteiro que tampouco aprofunda no instigante personagem de seu protagonista.

Gareth Jones, que falava russo fluentemente, descobriu o que estava acontecendo em uma viagem à União Soviética, na qual driblou a proibição de acesso de jornalistas estrangeiros à Ucrânia. Foi o primeiro a denunciar com veemência no ocidente a fome causada pelo regime de Stalin, e sofreu por isso uma enorme campanha de descrédito, orquestrada pelo governo soviético, mas levada à cabo por jornais ocidentais através de seus correspondentes em Moscou. Essa relação entre jornalistas com um  propósito político ou que barganham sua independência e o jornalismo que busca a verdade, está muito bem exposta no filme.

O filme foi gestado e rodado muito antes que se pudesse imaginar os acontecimentos atuais,  a Guerra entre Rússia e Ucrânia. A União Soviética não existe mais, Stalin saiu faz tempo de cena e agora é Putin quem dá as cartas, mas o episódio conhecido como Holomodor (a grande fome, ou a fome-morte) entre os ucranianos, aprofunda a dimensão histórica  do conflito entre as duas nações. A obra vale também pelo resgate de Gareth Jones que caiu no esquecimento, a não ser na Ucrânia, onde é lembrado como herói até os dias atuais. Mais sobre ele em https://www.garethjones.org/.

A Sombra de Stalin estreou no Festival de Berlim de 2019, foi premiado no Festival de Cinema Polonês do mesmo ano como melhor direção de arte e melhor filme. Pode ser assistido na Netflix.

Belfast

Filme de Kenneth Branagh, Reino Unido 2022

Agosto de 1969, um dia lindo de verão em Belfast, Irlanda do Norte. Buddy, um guri de nove anos, brinca nas ruas de seu bairro, em escaramuça com dragões imaginários, até ouvir um terrível barulho que precede uma horda furiosa de pessoas armadas de paus e pedras. Atônito, vê seu bairro se transformando, do nada, numa praça de guerra. Era o estouro de um conflito que ceifaria vidas por quase quarenta anos.

Março de 2020. O ator e diretor Kenneth Branagh passeia com seu cachorro nas ruas estranhamente silenciosas de Londres. Em função das restrições da Covid ele pode novamente ouvir os sons de pássaros, como na sua infância em Belfast há 50 anos. Essa lembrança sonora evoca outras memórias que ele percebe que estão presas, guardadas feito fantasmas num armário. Ele pensa que está na hora de lidar com elas, deixá-las sair. No dia 23 de março assiste na TV o primeiro ministro decretar lockdown na Inglaterra. Decide que neste período de confinamento irá desconfinar os fantasmas, escrevendo o roteiro de Belfast.

Belfast, Buddy observa a transformação do bairro numa praça de guerra.

O filme não é estritamente autobiográfico, mas as memórias de Kenneth sedimentam fortemente a obra, principalmente o início impactante, o momento de ruptura do menino com a sua vida anterior, quando o parque de diversões que era seu bairro e a fortaleza protetora que era sua comunidade, viram caos. As lembranças de dias cinzentos predominantes, pelos raros momentos de sol, ditaram a opção por filmar em preto e branco as ruas que se fixaram monocromáticas em sua mente. O cinema e o teatro, no entanto, são coloridos, seus tons exuberantes contrastam com a realidade gris, refletindo o fascínio que exerciam sobre o garoto. Se as cenas de tumulto no início mostram um diretor virtuose na misancene e na elaboração de planos complexos, esses momentos mais íntimos revelam sutilezas, como o reflexo do filme colorido nos óculos da avó de Buddy em preto e branco. A avó, interpretada magistralmente por Judi Dench, protagoniza outro dos momentos impactantes, o final do filme. É uma cena intimista, muito diferente do alvoroço inicial, mas não menos arrepiante.

Belfast foi  rodado  no relaxamento do primeiro lockdown com um protocolo severo que tornava os dias de filmagens mais curtos, o que exigia decisões rápidas e uma grande disciplina no set. Com a experiência do diretor e um time de colaboradores talentosos na equipe e elenco (e uma boa dose de sorte, principalmente de dias bonitos nas externas), o filme foi rodado em 35 dias. Muitos o classificam como um filme coming of age (um filme de formação) no qual o protagonista passa pela transição de infância para a juventude, ou de adolescente para um jovem adulto. No entanto, apesar do protagonismo de Buddy, Branagh consegue inserir um olhar adulto nos dramas que os pais e avôs do menino enfrentam. É como se ao lado da perspectiva infantil surgisse um olhar em retrospecto de um adulto sobre si como criança; ao lado dos idealizados Ma e Pa, apresentam-se conflitos dolorosamente mundanos. O plano de abertura, uma Belfast atual, moderna e filmada em cores que antecede o mergulho no passado, já sugere essa dualidade de perspectivas. E isso confere ao filme uma dimensão dramática instigante. Falando em dualidade, há que se destacar outro momento alto de Belfast, a sequencia que interliga luto e celebração à vida, ao som de Everlasting Love. Nessa sequencia o diretor consegue evitar as armadilhas do adocicamento exagerado, presente em alguns momentos.

Belfast obteve vários prêmios, entre eles  o prêmio BAFTA de melhor filme britânico, o Globo de Ouro e o Oscar para melhor roteiro original. É um filme para ser visto na grande tela dos cinemas.

The Falls

Filme de Chung Mong-hong, Taiwan 2021

O substantivo the falls tem duplo sentido. Significa as cachoeiras/cataratas, ou as quedas. Ambos significados têm tudo a ver com o filme. The Falls retrata uma jornada de uma adolescente e sua mãe. Uma jornada de inúmeros tropeços que resultam numa enorme queda. E num esforço maior ainda para tentar se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Um dos maiores atributos do filme é o uso das viradas. Não se trata  das viradas clássicas de roteiro na trama ou de transformação do personagem, mas viradas no olhar do espectador, que julga estar acompanhando um determinado enredo e descobre, de repente, que as aparências enganam. Uma dessas “aparências enganosas” é a importância da Covid-19 para o contexto da filme. A Covid se encontra no pano de fundo, tem sua função na obra, mas a doença da qual o filme trata se revelará outra, bem diferente.

Mais uma característica marcante da obra é a delicadeza com que The Falls trata seus personagens, sem poupar-lhes das crueldades e dos tapas da vida, mas com uma sensibilidade ímpar na compreensão de seus conflitos. Essa delicadeza se expressa principalmente no trabalho de atores, em especial o das duas protagonistas Alyssa Chia e Gingle Wang. Em tom contido elas navegam por grandes dramas, torrentes turbulentas por baixo da superfície.

Chung Mong-hong, também conhecido como Nagao Nakashima, é um realizador que vem se destacando por seu estilo singular. Nessa grande sinfonia do fazer cinematográfico ele, além de reger a orquestra, toca os instrumentos de roteiro e direção de fotografia. É um cineasta de olho apurado, texto afinado e grande sinergia com seus atores. Dele é também o intrigante A Sun (2019), disponível na Netflix, assim como The Falls, ambos representando o cinema feito em Taiwan.

Trailer com legendas em inglês