Destaque

4,3,2,1

Livro de Paul Auster, EUA, 2017

O que rege a nossa vida, o quanto o poder da decisão sobre ela é nosso, é da sorte, ou do acaso? O quanto da nossa personalidade é forjada pelas circunstâncias, o quanto trazemos dela em nosso DNA?  Somos frutos do que nos acontece na vida, ou nossa vida é fruto de quem somos?

Todas essas questões que ocupavam Paul Auster desde seus primeiros livros, tomam a forma da musa da sua grande obra, 4,3,2,1, publicada após sete anos de silêncio editorial.  O título já sugere que há algo de diferente nesse romance do escritor nova iorquino. Diferença que reside na ideia original: contar a história de um personagem, porém com inúmeras variantes de vida. Essa ideia exige também uma estrutura diferente. E uma escrita envolvente que nos faça esquecer a premissa, para nos surpreender na primeira “virada”.

Auster se propõe um processo de criação diferente, em que amplia consideravelmente as liberdades de escolha do autor em relação ao seu protagonista. E para que esse personagem não se perca, no meio de tanta variante, e deixe de ser um personagem para tornar-se quatro, ele usa muito de si, pinta um autorretrato, não para produzir uma biografia, mas para ter um modelo, uma bússola sólida neste processo criativo.

Archie Ferguson nasceu em 1947, o ano de nascimento do autor, mas o romance começa muitos anos antes, com a chegada de seu avô aos Estados Unidos e a hilária história que originou seu nome. O romance acompanha essa pré-história do protagonista e depois, pouco mais de duas décadas de sua vida: infância, estudos, as escolhas profissionais e as escolhas amorosas. E de quebra acompanha essa época rica e tumultuada dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a Guerra do Vietnam, a luta contra o racismo, os assassinatos de lideranças importantes, as revoltas nos bairros negros e nas universidades.

Os primeiros capítulos seguem à risca a condição de escrita envolvente que surpreende o leitor com a primeira virada, no estilo vibrante do autor de Trilogia de Nova Iorque, Invisível e Desvarios no Brooklyn. No entanto, na medida que avança torna-se, em vários momentos, repetitivo e prolixo demais, o que resulta num livro de mais de oitocentas páginas. Ao final, Auster volta ao seu melhor na amarração da(s) história(s), o que compensa pelo longo caminho percorrido.

4,3,2,1 que começa praticamente com uma anedota sobre um imigrante judeu, é uma grandiosa declaração à arte da escrita, à criação de modo geral. E ao mesmo tempo um mergulho nostálgico numa época de nossas vidas em que tudo é intenso, tudo é novo, instigante e às vezes ameaçador, como o próprio destino.

Quis o destino, ou o acaso, que no exato momento em que escrevo a resenha, recebo a notícia do falecimento de Auster, aos 77 anos, vítima de um câncer no pulmão. Deixa um legado sensacional de obras, as favoritas entre as que li estão citadas acima.

4,3,2,1 foi finalista do prestigioso Man Booker Prize de 2017 e foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Se você quer saber mais sobre o autor, 4,3,2,1, embora não seja uma autobiografia, pode ser uma ótima fonte.

Destaque

A Conferência

Filme de Matti Geschonneck, Alemanha, 2022

Muitos filmes são baseados em livros – romances ou não ficção – alguns em peças de teatro. É a primeira vez que vejo um filme baseado em uma ata, ou no protocolo de uma reunião.  Não se pode pensar em peça inspiratória mais burocrática ou menos dramática.

No entanto, depende da reunião.

E, principalmente, da forma como ela é adaptada para a tela.

No gelado mês de janeiro de 1942, várias autoridades do regime nazista reuniram-se em Wannsee para tratar de uma solução definitiva para a “questão judaica”. Wannsee é um lago no subúrbio de Berlim, onde a SS instaurou sua sede campestre, um cenário idílico para a mais macabra das reuniões, na qual se alinhavou o mecanismo de extermínio dos judeus da Europa.

O filme só trata dessa reunião, não sai da mansão (confiscada em 1941 pelos nazistas), não usa música ou outros elementos dramáticos não diegéticos e, no entanto, deixa o espectador grudado na tela. O roteiro é uma das peças chave nesse sucesso, a outra é o trabalho de atores, principalmente o de Philipp Hochmair na pele de Reinhard Heindrich. A câmera nos conduz pelos sinistros corredores do poder da Alemanha nazista e pela “ideologia” que sustentava esse poder. Ali a banalidade do mal, termo que a filósofa Hannah Ardent cunhou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, se revela em plenitude no grande Écran.

Não há como não comparar esse filme Alemão, à produção norte americana Zona de Interesse, que faturou o Oscar de melhor filme Internacional, neste ano. Os dois acontecem em locais icônicos e foram filmados nas próprias locações; os dois evitam mostrar as atrocidades de forma explícita (A Conferência é mais radical nesse conceito); e ambos focam nos algozes, ou em tentar expor a mentalidade dos algozes. A Conferência, ao meu ver, atinge esse objetivo, com maior sucesso.

Hoje, na mansão que abrigou o histórico encontro, existe o Museu da Conferência de Wannsee que visitei em 1994. E que tem uma exposição arrepiante, no tom aparentemente seco do filme, em contraste com a vista ao redor.

A Conferência pode ser visto na Amazon Prime e na Google Play, Filmes e TV.

Destaque

VROOOM

O medo recolheu toda a pequena tribo para dentro da caverna, mas apesar da grande plateia presente foi o parto menos assistido, pois a atenção de todos se fixava na tempestade impiedosa. A parturiente gemia enquanto o vento uivava num dueto de arrepiar. Gemia pelas dores do parto, pelo abandono, pela aflição dos dentes batendo em volta, pelo mistério das forças que arremessavam chuvas e trovoadas contra a rocha que os abrigava. No meio de toda a balbúrdia, ninguém ouviu o choro inaugural cuja sonoridade determinava o nome de quem nascia na tribo. Por isso, ele foi chamado de Vrooom, mistura de vento e trovão, como o som da tempestade que abafou seu pranto quando foi expelido da caverna uterina e vislumbrou o mundo pela primeira vez.

Vrooom é um romance que iniciei há muito anos, e foi sendo escrito aos poucos, nas brechas entre outros trabalhos. O primeiro tratamento foi finalizado em 2011. A trama se passa na pré-história, época em que os diálogos eram muito diferentes dos atuais; ações e sentimentos, nem tanto. O grande desafio para contar essa história foi trabalhar personagens limitados pelo domínio incipiente da linguagem e comunicar seus anseios e conflitos ao leitor do século XXI. O exercício de entrar em suas mentes e dar a roupagem de palavras ao intenso movimento de sensações, motivações e dúvidas, usando o verbo para descrever a sua ausência, foi muito interessante.

A conexão entre passado remoto e os dias de hoje está bastante presente no texto, na temática e nas questões que aborda. Pode-se dizer que é um romance contemporâneo da pré-história ou uma lenda pós-moderna.

Vrooom foi contemplado no edital emergencial do governo do estado, o FAC-Digital-RS. O livro está disponível gratuitamente em formato digital neste blog. Você pode “emprestá-lo” a amigos, compartilhando o link. Por favor, deixe um comentário indicando que fez o download ou que está lendo online. Comentários e opiniões sobre o livro serão mais do que bem-vindos. 

Acesse Vrooom pra ler ou baixar, clicando aqui.

RIPLEY

Série de Steven Zaillian, EUA, 2024

Há muito tempo não via uma série de encher os olhos como Ripley. Talvez desde Carnivale de 2005. Seu criador, roteirista e diretor é mais conhecido (e premiado) por seus trabalhos com roteiro. Foi oscarizado pelo roteiro adaptado de A Lista de Schindler, e assina o roteiro de várias outras obras de peso.

No entanto, Ripley não tem cara de obra de roteirista. Desde o primeiro fotograma fica claro que a trama é secundária e o visual é o carro chefe. Zaillian e o diretor de fotografia, Robert Elswit, trabalham a série toda em preto e branco (com a exceção de um plano em que o detalhe da pegada de um gato em uma mancha de sangue aparece colorida, homenagem clara à A Lista de Schindler). É um preto e branco de alto contraste, com luzes bem marcadas, sombras densas e proeminentes.

O primoroso trabalho de luz remete ao cinema noir, mas também tem muito a ver com o pintor Caravaggio (1571-1610), pelo qual o protagonista cria uma verdadeira obsessão. Além da iluminação, a composição de cada enquadramento é magistral. Ângulos de câmera radicais e objetos em primeiro plano que muitas vezes emolduram os sujeitos são amplamente utilizados. E texturas das mais variadas como grades, escadarias etc., desenham perspectivas interessantes.

Texturas, enquadramento magistral, reflexos e Preto e Branco compõem a estética de Ripley

Com todos esses elementos a série cria uma narrativa visual espetacular em todos os sentidos. O quadro acima, por exemplo, fala muito sobre o protagonista e seu “multipersonalismo” camaleônico.

Se a trama é secundária, a composição dos personagens, não é. E o trabalho de atores, repleto de silêncios significativos e diálogos precisos dá as mãos ao impressionante impacto visual. O arco do protagonista é o que mais impressiona nessa construção, não tanto pelas mudanças no personagem, mas pela mudança na aversão/empatia do espectador por ele. A partir de certo momento, a vontade de que pague pelos seus crimes torna-se uma torcida para que consiga se safar.

O elenco que forma o triângulo de protagonistas tem Andrew Scott como Ripley, Johnny Flynn como Dickie e Dakota Fanning como Marge. John Malkovich faz uma participação especial no último episódio, ele que já foi Ripley no filme O Retorno do Talentoso Ripley de 2002.

A série é adaptação do romance O Talentoso Ripley (1955) de Patricia Highsmith que gerou outros 4 livros com o mesmo personagem.

A série, bem como o filme O Talentoso Ripley  (1999) de Anthony Minghella, estão disponíveis na Netflix. É interessante assistir as duas obras em sequencia (comece pela série) para ver como é possível criar adaptações absolutamente diferentes da mesma história.

Veja abaixo o trailer (dublado, infelizmente).

O Problema dos Três Corpos

Livro de Cixin Liu, China, 2008 + Série, criadores D & D, EUA, 2024

Tão logo publicado no Brasil, o livro de Cixin Liu me chamou a atenção de cara, pela capa e pelo nome. Não havia ouvido nada sobre o romance nem sobre o autor, mas aquela capa, incluído o título, transmitia algo irresistível.

O romance inicia com narrativa impactante centrada no auge da revolução cultural na China, mostrando o quanto a política, aliada à ignorância, destroçou a comunidade científica.

Após uma elipse no tempo vai revelando personagens interessantes e fragmentos de uma trama que oculta mais do que revela, tecendo um suspense denso. Junta a isso um cabedal de ideias muito interessantes sobre a aparente ordem do universo que pode ser apenas uma ilusão de ótica e como, sobre essa ilusão, é construída toda nossa história de civilização.

A partir da metade do livro o estilo, a qualidade da trama e dos personagens cai rapidamente e o texto lembra a literatura pulp norte-americana sobre ataques de civilizações alienígenas mais avançadas e maléficas.

A sociedade do planeta trisolar, tão bem descrita através do jogo na primeira metade do livro, perde em densidade. O protagonismo se transfere de uma cientista obstinada para um policial grosseiro (e também obstinado). É difícil entender como uma narrativa inicial arrebatadora se perde tão radicalmente no meio do caminho. Em outras palavras, é um livro bipolar sobre um planeta trisolar.

Independente da minha opinião, o romance de ficção científica virou uma trilogia, rompeu as barreiras do gênero e da distância entre oriente e ocidente e tornou-se cult após a tradução para o inglês. Na China ele já havia estourado, pouco depois de sua publicação. O presidente Obama elogiou o livro e isso impulsionou-o ainda mais.

A Netflix comprou então os direitos de adaptação para uma série e contratou os showrunners de The Games of Thrones David Benioff e D.B Weiss, conhecidos como a dupla D &D. Vale mencionar que Benioff foi o roteirista também do inteligentíssimo, A Última Noite de Spike Lee. A eles juntou-se o roteirista Alexander Woo.

A Netflix investiu alto, não apenas na produção, mas na divulgação pré-lançamento, gerando enorme expectativa. A primeira temporada, com 8 episódios, acabou de estrear. A série inicia fiel ao livro, não apenas na trama mas na qualidade narrativa e da construção dos personagens. O primeiro episódio é absolutamente cativante e também o melhor. O que significa, que assim como no livro, a qualidade narrativa cai, mas por motivos diferentes.

O conflito principal é exposto bem cedo, no segundo ou terceiro episódio. O mistério da morte de cientistas sai de cena após a sua exposição e dá lugar a como lidar com a ameaça iminente (o iminente, no caso, significa daqui a uns 400 anos). O problema dos três corpos do planeta trisolar não é tão bem explorado como no romance, e a partir da metade, a série empurra a ficção científica para o pano de fundo e vira uma espécie de Friends. Ou seja, foca na relação entre cinco amigos, todos cientistas, que acabam se envolvendo na luta contra a ameaça iminente.

Os cinco amigos, formados em Oxford.

Como em Friends, os personagens são queridos, geram empatia, assim como os relacionamentos que os envolvem, mas a série perde em profundidade. Inclusive os elementos visuais seguem essa pegada: a direção de fotografia e os efeitos especiais se apresentam muito interessantes no início da série, e vão perdendo a originalidade do meio para a frente. A direção de arte se mantém impecável ao longo de toda a temporada.

Em resumo, a obra não corresponde às altas expectativas criadas em seu entorno, mas igual, é uma série boa de assistir que promove, ao lado de elementos de entretenimento, ideias interessantes e algumas reflexões.

Uma curiosidade: Obama foi convidado para uma participação especial na série, mas recusou. Sua resposta: “Caso haja uma verdadeira invasão alienígena, prefiro resguardar a minha participação para essa crise.”

Os oito episódios já estão disponíveis na Netflix. Caso queria dar uma olhada no livro, clique abaixo.

Rojst Milênio

Série, criação de Jan Holoubek – Polônia – 2024 – terceira temporada. 

Rojst Milênio é a continuação de Rojst e Rojst 97. As tramas entre as temporadas são independentes, porém interligadas, assim que vale a pena ver as três na sequência para um usufruto melhor. Se você já viu as duas anteriores faz um tempo, é bom rever e depois partir para a terceira temporada. Para ler as resenhas sobre as duas primeiras temporadas basta clicar no nome delas acima, na primeira linha do parágrafo.

Milênio, assim como as suas precedentes, trabalha com duas linhas de tempo: o passado e o presente (quando as consequências do passado vêm à luz). O passado são os anos pós-guerra, quando a Polônia começa a se recuperar da ocupação nazista e o regime comunista se instala sob os auspícios da União Soviética.  O presente, ou o tempo atual, é justamente as últimas semanas de 1999, ou o fim do segundo milênio. A Polônia já deu adeus ao regime comunista (que é o presente em Rojst), já completou o período de transição para o capitalismo (Rojst 97) e começa a entrar na onda nacional negacionista de extrema direita que tomará oficialmente o poder através do PIS (Partido Lei e Justiça) em 2015. Entretanto, pouco parece ter mudado na aldeia ao lado do pântano que segue chafurdando nas sombras do passado, gênese dos crimes do presente.

A sensação que perpassa durante a série toda é justamente essa: as personagens tentam avançar com suas vidas, mas se movimentam numa areia movediça – a herança de um passado que alguns querem ocultar, outros tentam encarar, mas tanto para uns como para outros, ele não larga do pé.

Rojst Milênio segue a mesma toada das temporadas passadas, mas não têm o mesmo impacto, a mesma pegada dramática e originalidade narrativa. O roteiro segue competente, as tramas e mistérios são bem conduzidos, mas aquele clima de terror sombrio que encobre crimes impronunciáveis nas primeiras temporadas perde muita a força, assim como o jornalista Witek, perde o seu protagonismo. E quando jornalistas cedem protagonismo para a polícia, a obra perde em profundidade, torna-se mais uma série policial, justamente quando o tema do negacionismo, da alteração da narrativa pelo poder oficial, sobe ao palco.

Ainda assim, quem viu e gostou das duas primeiras temporadas, não vai deixar de assistir a terceira, e curtir seus bons momentos. Rojst Milênio, assim como as outras temporadas, pode ser vista na Netflix.

Casa de Baralho, episódio de hoje: Chinelos

O naipe mais forte na Casa do Baralho é o Paus, ou melhor, o cara de paus. É assim desde que os portugueses descobriram o pau Brasil. O recorde de ultrapassagem dos limites da cara de pau foi batido em recente sessão do Superior Tribunal Militar, que julgou recurso do Caso Guadalupe de 2019.

Em uma tarde de domingo, um carro rumava a um chá de bebê em Guadalupe, no Rio de Janeiro. Eram cinco pessoas no veículo. O motorista, músico de profissão, a esposa, o filho de sete anos, o sogro e uma amiga. Passaram por um veículo do exército que estava em ação de patrulhamento perto da vila militar. O comandante da patrulha achou tratar-se de um carro roubado por traficantes, ou assaltantes, ou coisa parecida. Pelo sim pelo não, atiraram no carro da família e atingiram o motorista. O carro andou mais um pouco e parou na frente de um prédio. As duas mulheres com a criança saíram do banco de trás desesperadas em busca de socorro. Um cidadão que passava no local, catador de latinhas por ocupação, correu para ajudar o motorista ferido. Nesse momento, os militares resolveram metralhar o carro.

No total, duzentos e cinquenta e sete tiros foram disparados. Sessenta e dois projeteis perfuraram o veículo, nove atingiram o motorista que morreu na hora. O catador de latinhas ficou gravemente ferido e faleceu onze dias depois. O sogro também foi ferido, mas sobreviveu.

Os soldados foram julgados em primeira instância do tribunal militar. Foi o primeiro caso na história da Casa do Baralho em que soldados foram condenados pela justiça militar por matar civis. Parecia que a gravidade do crime ultrapassava a cara de paus do corporativismo. Mas então a defesa recorreu ao STM.

O emérito ministro relator, general da aeronáutica, votou pela absolvição dos militares pelo assassinato do músico, e a troca de doloso para culposo no homicídio do catador, recorrendo a um malabarismo retórico que entortaria até a Nadia Comanesci.

Desprezando a perícia, que não encontrou nenhum projetil que não fosse dos militares e nenhum furo de bala na camionete dos soldados, disse que o primeiro tiro atingiu o músico num contexto de confronto dos soldados com traficantes. E que não há certeza de que o músico não morreu desse primeiro tiro, enquanto o carro estava andando. Se ele morreu desse tiro, não há como condenar os militares por assassinar alguém que já estava morto, quando deram a segunda rajada contra o carro parado. Seria um crime impossível, vaticinou o Juiz Militar. E como não há certeza de que tiro morreu a vítima (mais uma vez desprezando a perícia), in dubio, pro réu.

Mas o catador de latinhas estava vivo na segunda rajada. Ali o ilustre general contorcionista recorreu à legítima defesa imaginária, termo que só poderia ser inventado na Casa do Baralho. “É notório que os apelantes estavam sob forte tensão no dia do ocorrido” concordou o ministro com a tese da defesa. O fato de o catador de latinhas estar sem camisa e de chinelos acentuou a ameaça, esclareceu o juiz, e também: “reforçava a tese de que o catador representava uma ameaça imaginária aos apelantes ao se proteger por trás da porta do veículo, o qual possuía insulfilm nos vidros, podendo gerar a conclusão de que tornaria  a usar a arma.”

Só tinha um detalhe: o catador estava desarmado. Mas isso os militares não podiam imaginar.

Já é uma tremenda cara de pau soldados serem julgados por crimes contra civis por um tribunal específico da corporação. Mas como até um passado recente os tribunais militares julgavam inclusive civis, ainda dá para dar um desconto. Outro absurdo é o exército fazer papel de polícia, mas essa também é uma tradição secular brasileira. O absurdo que não dá para aceitar é a pena de morte pra quem está de chinelos e sem camisa, ainda mais se ele se esconde atrás de um carro quando é alvejado por uma patrulha. Se o carro tem insulfilm nas janelas, aí danou-se, é um agravante que permite execução sumária.

O relator comutou a pena de 31 anos de prisão do oficial que comandava a patrulha para três anos e meio em regime aberto, e as penas de 28 anos dos outros sete soldados para 3 anos e dois meses em regime aberto. O ministro revisor seguiu o voto do relator. Há ainda 13 ministros a votar.

Seguirá a maioria o voto do contorcionista relator? Quanto tempo permanecerá inquebrável este novo recorde de cara de Paus? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho.

Openheimer

Filme de Christopher Nolan, EUA 2023

Christopher Nolan é um dos cineastas que melhor consegue conjugar arte com entretenimento, crítica com bilheteria. Já no seu segundo longa, Memento (Amnésia, no Brasil) chamou atenção pela inventividade narrativa e a maneira ousada de prender o espectador, através da fragmentação de informação. Em Openheimer, ele traça a biografia do físico que foi alcunhado de o pai da bomba atômica, ou de o Prometheu Americano, título do livro biográfico que serve de base para o filme, dos autores Kay Bird e Martin Jay Sherwin.

Nolan estrutura sua narrativa em duas situações mescladas no filme e diferenciadas pela fotografia em colorido e em preto e branco. Ao pouco nos é revelado que essa estética separa dois pontos de vista. Nas cenas em colorido, Openheimer enfrenta uma audiência da Comissão de Energia Atômica, em que acaba narrando boa parte de sua vida, desde seus estudos universitários até a direção do Projeto Manhattan, que resultou na criação da bomba atômica.  Nas cenas em preto e branco o inquirido (perante o senado norte americano), é Lewis Strauss. Lewis, descobriremos no decorrer do filme, é o antagonista, um dos membros da comissão que inquire Openheimer nos anos do Macarthismo. Nas cenas em preto e branco ele expõe o seu ponto de vista sobre seu desafeto. Cria-se assim uma obra sobre um herói injustiçado, em conflito interno com o ato que protagonizou.

Física quântica, intrigas políticas, e um dilema moral de proporções épicas tornam-se o centro da vida do cientista após aceitar o desafio de dirigir o projeto de pesquisa e construção de uma bomba nuclear, numa corrida contra o tempo e contra os esforços dos nazistas. Nolan costura muito bem esses temas num filme em que não se sente as três horas de duração. No entanto, o desafio de destrinchar o personagem, construir um protagonista de carne, osso e, principalmente sentimentos, não é vencido com o mesmo louvor.

Cilian Murphy faz o papel principal. Eu temia, antes de assistir o filme, ver o Thomas Shelby travestido de Robert Openheimer. Não é o que acontece. O ator soube se liberar do peso das seis temporadas de Peaky Blinders, porém tampouco nos apresenta um personagem complexo e real como fez na série britânica. É difícil dizer se o problema reside no roteiro ou no trabalho de ator, provavelmente em ambos, mas com mais peso para as escolhas do roteiro e um fetiche por frases de efeito nos diálogos.

Openheimer, centrado em personagem cativante e evento de grande impacto na história mundial, ainda que interessante, não é dos melhores filmes do diretor. Mesmo assim é o favorito nas casas de apostas ao Oscar. O filme disputa a estatueta em nada menos do que treze categorias, entre elas Melhor Filme, Direção, Roteiro Adaptado, Ator e Atriz Coadjuvante. Em três dias saberemos se de fato será o grande vencedor. Para o meu gosto (não vi todos os candidatos) o melhor filme é Anatomia de Uma Queda.

Openheimer pode ser alugado na Amazon Prime, Claro TV, Apple TV e Google Play. É possível que após o Oscar, volte aos cinemas.

Atualização pós Oscar: Realmente foi o grande vencedor, premiado em 7 categorias, entre elas Melhor Filme, Diretor, Ator e Ator Coadjuvante.

Zona de Interesse

Filme de Jonathan Glazer, Inglaterra, Polônia 2024

Zona de Interesse era o local onde separavam os recém-chegados ao campo de Auschwitz para o trabalho ou para a morte. O apelido foi alcunhado pelos próprios “funcionários”. E é sobre o chefe desses funcionários e sua família, o comandante dessa fábrica de extermínio que Jonathan Glazer lança suas lentes num filme muito diferente.

Zona de Interesse é livremente inspirado no romance homônimo de Ian Amis de 2014. Porém no tema que aborda se aproxima mais de Eichmann em Jerusálem (1963), livro que trata das impressões da filósofa Hannah Arendt ao acompanhar o julgamento do engenheiro do esquema de extermínio em massa dos judeus, o que os nazistas chamavam de a solução final.  Neste livro Hannah cunhou o termo a banalidade do mal. Este poderia ser também o título do filme de Glazer.

Zona de Interesse retrata o cotidiano de uma família alemã em sua casa com um lindo pátio e um imenso jardim, um lugar que poderia ser paradisíaco, não fosse separado por apenas um muro do mais terrível campo de concentração, peça chave na máquina arquitetada por Eichmann. As lentes de Glazer não adentram o campo. Mas os sons do campo invadem as cenas do filme, e as chaminés dos crematórios espiam como papagaios de pirata através do muro, ao fundo do maravilhoso jardim da senhora Höss, a Rainha de Auschwitz.

Se no tema Glazer se inspira em Arendt, na abordagem ele se inspira em Brecht, que criou o distanciamento na dramaturgia teatral, tentando despir a emoção para despertar a reflexão junto ao espectador. Zona de Interesse rejeita qualquer recurso que possa acentuar o medo, a revolta, o sofrimento ou outros sentimentos que os filmes em geral, e os do holocausto em particular, costumam trabalhar. Recria assim a indiferença, o olhar gélido dos algozes em relação à suas vítimas. O grande sofrimento está implícito, o horror que envolve o espectador provém principalmente desse olhar gélido e da rotina, do dia a dia “normal” dessa família, vizinha (e operadora) das chaminés.

O terceiro elemento que diferencia o filme é a ausência de trama. Há uma narrativa, mas ela não é o fio condutor da obra e nela não há grandes conflitos e viradas dramáticas. O filme é quase um reality show que acompanha a família do comandante do campo. Há momentos em que ele se torna monótono, mas o impacto que ele causa é como o de uma droga de lenta liberação. Ao sair do filme você ficará horas, senão dias, pensando sobre ele.

No meio dessa estética monástica, despida de emoção, há um contraponto nas cenas da jovem que espalha comida durante a noite, nos lugares onde os prisioneiros passarão para seu trabalho escravo. Essas cenas foram filmadas sem luz artificial (como todo o filme), à noite, mas com uma câmera térmica do exército polonês que capta o calor, filmando em infravermelho. O resultado é um efeito onírico perturbador.

Zona de Interesse foi quase todo rodado no local do campo, onde hoje há um museu/memorial. O filme, premiado em Cannes em 2023, concorre à cinco Oscars: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Direção, Melhor Roteiro adaptado e Melhor Som. O desenho de som, sob a batuta de Johnnie Burn, é peça chave no filme. A atriz alemã Sandra Hüller, protagonista também de Anatomia de Uma Queda, tem o privilégio de ter dois filmes entre os cinco finalistas.

Atualização pós Oscar: O filme foi premiado como Melhor Som e Melhor Filme Internacional.

Casa Do Baralho, episódio de hoje: O Pacificador

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

No carnaval do primeiro ano do seu terceiro mandato o presidente L se fantasiou de odalisca e viajou para o Egito cantando Ê Faraó, Faraó. De lá pegou o bloco Rainha do Sabá e deu um pulo na Etiópia onde um espirito burlão tomou conta de sua língua em uma coletiva para a imprensa em que declarou: O que está acontecendo com o povo palestino em Gaza não aconteceu em nenhum outro momento histórico. Aliás, aconteceu sim, quando Hitler resolveu matar os judeus.

Na continuidade, ao ser perguntado sobre a morte de Navalny, opositor de presidente RasPutin que foi envenenado várias vezes e amargava uma prisão política no ártico, onde faleceu após uma “caminhada”, L declarou que era precipitado tirar conclusões, iria esperar o laudo da autópsia das… autoridades russas.

A fala do presidente burlão não foi entendida no contexto do carnaval, que é basicamente uma festa de inversão: homem se fantasia de mulher, rico de mendigo e pobre de sheik. O país dos judeus – povo vítima de um programa de exterminação que gerou a palavra genocídio – ser travestido de Hitler na fala de L, caiu como um coquetel Molotov no já inflamado Oriente Médio. E L, que aspira a um protagonismo de pacificador na arena internacional, juntou-se aos Hutis do Iêmen e ao Hezbollah do Líbano, como agente incendiário do Irã.

O chanceler israelense chamou o embaixador brasileiro e levou-o a uma visita ao museu do holocausto. Declarou o presidente burlão persona non grata e exigiu desculpas. O governo brasileiro achou isso uma afronta. Uma mijada dessas, ainda feita em hebraico, não aconteceu em nenhum outro momento da história, declarou o assessor especial Zero Aidemim. Israel alegou que havia intérprete durante a mijada, faziam questão que o embaixador entendesse direitinho a mensagem.

O presidente L ficou indignado com tamanho barulho por uma fala sua. Está acostumado à, de vez por outra, falar Merda, sem maiores consequências. Pensou até na possibilidade de declarar guerra se a coisa continuasse em escalada. Foi consultar, como quem não quer nada, as Forças Armadas.

— Pode tirar o cavalinho da chuva — disseram os milicos — até o B, que era dos nossos, a gente deu um para-te quieto nele quando aventou mandar tropas contra a Venezuela. Imagina, guerrear contra o exército que a gente mais admira no mundo.

L saiu da reunião cabisbaixo e a coisa piorou depois de uma conversa que teve com o chanceler norte americano em que ouviu mais uma reprimenda (em inglês). Ah que saudades do Obama, pensou, lembrando-se de quando foi chamado por ele de O Cara. Mas logo se animou novamente. O assessor Aidemim veio correndo com a boa notícia: o Aiatolá Ali Cumeu Ine lhe outorgou o prêmio funcionário do mês do Eixo da Resistência.

Continuará escalando o incidente entre as duas nações? Aprenderá o presidente L a manter o espirito burlão longe de suas falas?

Não perca no próximo episódio de A  Casa do Baralho.

Morte Matada

Cães de Aluguel de Quentin Tarantino.

Se um dia uma nova civilização for estudar a vida humana com base nos filmes e principalmente nas séries dos últimos quarenta anos, chegará à conclusão de que a grande maioria das pessoas morria de morte matada, como se diz, e não de morte morrida.

Guerras e assassinatos liquidavam a maior parte dos humanos e pouquíssimos faleciam de doenças e menos ainda de velhice. Viver era uma aventura perigosíssima, em cada esquina poderia estar espreitando um serial killer, uma gangue, ou um exército conquistador sedento de sangue. Talvez cheguem à conclusão de que o ser humano desapareceu, após o último serial killer ter enlouquecido de vez ao constatar que não sobrou mais ninguém para sequestrar/torturar/matar e se auto imolou com um uivo dilacerante.

O que explica esse fetiche pela morte matada no audiovisual? Fetiche que não encontra paralelo em outras expressões artísticas, ao menos não nessas proporções. O que explica haver uma série cujo protagonista é um serial killer bonzinho, que só mata serial killers, ou uma franquia de filmes em que o assassino seriado é também um canibal?

Para tentar responder a isso haveria de se criar um grupo de estudos ultra multidisciplinar. O que não deixa dúvidas é que o sucesso de Dexter, Hannibal e outras obras parecidas se constituem num excelente campo de estudo sobre os humanos nessa época do final do século XX e início do XXI. Principalmente provocando o questionamento se a arte é um meio de sublimação da violência latente do homo sapiens, ou se ela inspira e atiça os piores instintos que milênios de civilização (não) conseguiram esconder.

Seja o que for, talvez essa futura civilização que nos estude a partir de filmes e séries e chegue à conclusão que quase todos morriam de morte matada, entenda o homicídio como uma ferramenta de equilíbrio, de controle do maior predador da terra sobre si mesmo. Neste caso, os supervilões serão considerados heróis e os policiais que os perseguem e atrapalham seus serviços serão os malvados.

E Dexter, um assassino em série de assassinos em série, que trabalha como especialista forense na polícia de Miami, seria a chave para decodificar a triste mensagem: o ser humano é um exterminador em série.