Casa Do Baralho, episódio de hoje: O Pacificador

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

No carnaval do primeiro ano do seu terceiro mandato o presidente L se fantasiou de odalisca e viajou para o Egito cantando Ê Faraó, Faraó. De lá pegou o bloco Rainha do Sabá e deu um pulo na Etiópia onde um espirito burlão tomou conta de sua língua em uma coletiva para a imprensa em que declarou: O que está acontecendo com o povo palestino em Gaza não aconteceu em nenhum outro momento histórico. Aliás, aconteceu sim, quando Hitler resolveu matar os judeus.

Na continuidade, ao ser perguntado sobre a morte de Navalny, opositor de presidente RasPutin que foi envenenado várias vezes e amargava uma prisão política no ártico, onde faleceu após uma “caminhada”, L declarou que era precipitado tirar conclusões, iria esperar o laudo da autópsia das… autoridades russas.

A fala do presidente burlão não foi entendida no contexto do carnaval, que é basicamente uma festa de inversão: homem se fantasia de mulher, rico de mendigo e pobre de sheik. O país dos judeus – povo vítima de um programa de exterminação que gerou a palavra genocídio – ser travestido de Hitler na fala de L, caiu como um coquetel Molotov no já inflamado Oriente Médio. E L, que aspira a um protagonismo de pacificador na arena internacional, juntou-se aos Hutis do Iêmen e ao Hezbollah do Líbano, como agente incendiário do Irã.

O chanceler israelense chamou o embaixador brasileiro e levou-o a uma visita ao museu do holocausto. Declarou o presidente burlão persona non grata e exigiu desculpas. O governo brasileiro achou isso uma afronta. Uma mijada dessas, ainda feita em hebraico, não aconteceu em nenhum outro momento da história, declarou o assessor especial Zero Aidemim. Israel alegou que havia intérprete durante a mijada, faziam questão que o embaixador entendesse direitinho a mensagem.

O presidente L ficou indignado com tamanho barulho por uma fala sua. Está acostumado à, de vez por outra, falar Merda, sem maiores consequências. Pensou até na possibilidade de declarar guerra se a coisa continuasse em escalada. Foi consultar, como quem não quer nada, as Forças Armadas.

— Pode tirar o cavalinho da chuva — disseram os milicos — até o B, que era dos nossos, a gente deu um para-te quieto nele quando aventou mandar tropas contra a Venezuela. Imagina, guerrear contra o exército que a gente mais admira no mundo.

L saiu da reunião cabisbaixo e a coisa piorou depois de uma conversa que teve com o chanceler norte americano em que ouviu mais uma reprimenda (em inglês). Ah que saudades do Obama, pensou, lembrando-se de quando foi chamado por ele de O Cara. Mas logo se animou novamente. O assessor Aidemim veio correndo com a boa notícia: o Aiatolá Ali Cumeu Ine lhe outorgou o prêmio funcionário do mês do Eixo da Resistência.

Continuará escalando o incidente entre as duas nações? Aprenderá o presidente L a manter o espirito burlão longe de suas falas?

Não perca no próximo episódio de A  Casa do Baralho.

Morte Matada

Cães de Aluguel de Quentin Tarantino.

Se um dia uma nova civilização for estudar a vida humana com base nos filmes e principalmente nas séries dos últimos quarenta anos, chegará à conclusão de que a grande maioria das pessoas morria de morte matada, como se diz, e não de morte morrida.

Guerras e assassinatos liquidavam a maior parte dos humanos e pouquíssimos faleciam de doenças e menos ainda de velhice. Viver era uma aventura perigosíssima, em cada esquina poderia estar espreitando um serial killer, uma gangue, ou um exército conquistador sedento de sangue. Talvez cheguem à conclusão de que o ser humano desapareceu, após o último serial killer ter enlouquecido de vez ao constatar que não sobrou mais ninguém para sequestrar/torturar/matar e se auto imolou com um uivo dilacerante.

O que explica esse fetiche pela morte matada no audiovisual? Fetiche que não encontra paralelo em outras expressões artísticas, ao menos não nessas proporções. O que explica haver uma série cujo protagonista é um serial killer bonzinho, que só mata serial killers, ou uma franquia de filmes em que o assassino seriado é também um canibal?

Para tentar responder a isso haveria de se criar um grupo de estudos ultra multidisciplinar. O que não deixa dúvidas é que o sucesso de Dexter, Hannibal e outras obras parecidas se constituem num excelente campo de estudo sobre os humanos nessa época do final do século XX e início do XXI. Principalmente provocando o questionamento se a arte é um meio de sublimação da violência latente do homo sapiens, ou se ela inspira e atiça os piores instintos que milênios de civilização (não) conseguiram esconder.

Seja o que for, talvez essa futura civilização que nos estude a partir de filmes e séries e chegue à conclusão que quase todos morriam de morte matada, entenda o homicídio como uma ferramenta de equilíbrio, de controle do maior predador da terra sobre si mesmo. Neste caso, os supervilões serão considerados heróis e os policiais que os perseguem e atrapalham seus serviços serão os malvados.

E Dexter, um assassino em série de assassinos em série, que trabalha como especialista forense na polícia de Miami, seria a chave para decodificar a triste mensagem: o ser humano é um exterminador em série.

Bye 2023

E lá vai 2023.

Um ano difícil na ficção e mais ainda na realidade.  Começou com a bárbara invasão do dia 8 de janeiro ao palácio presidencial, ao congresso e ao prédio do STF, uma semana após a festiva posse que celebrou a eleição de um novo presidente no Brasil. Leia em As Quatro Linhas.

Seguiu com os avanços e retrocessos dos direitos indígenas, principalmente na questão do Marco Temporal abordada em Embaralhados e em A Casa Caiu? Questão que segue embaralhando as nossas mentes e embrulhando o estômago.

Em 7 de outubro, um ataque sem precedentes no alcance, na surpresa e na selvageria contra o Estado de Israel detonou uma guerra e flagelo que não parecem próximos do fim, ao contrário, há uma ameaça constante de ampliação do conflito para outras frentes e um aumento acirrado em manifestações antissemitas pelo mundo. Leia em O Espetáculo da Barbárie.

No âmbito da ficção, se destacaram aqui no blog os filmes mexicanos Ruído e Família, o chileno 1976 e o francês Athena. A série brasileira Manhãs de Setembro e a derradeira temporada de The Crown (em breve resenha). Nas letras, o romance Louças de Família, mais uma obra visceral e contundente de autoras e autores negras/os que estão conquistando seu espaço no universo editorial brasileiro, um ponto de luz nesse ano difícil.

Despedindo-se deste ano triste, o Blog do Lerner deseja a todos um 2024 pacífico na realidade e emocionante nas artes.

Nada de Novo no Front

Filme de Edward Berger – Alemanha, 2022

Filmes de Guerra é um assunto cabeludo. A guerra é um prato cheio para o cineasta. Os conflitos dramáticos são literalmente uma questão de vida ou morte; o movimento – um dos grandes motores da sétima arte, é super potencializado pela ação das tropas e dos combates. Além disso, a guerra é o cenário perfeito para apresentar heróis e vilões, cenas de camaradagem e de violência, efeitos especiais e planos espetaculares.

Há filmes de guerra que se contentam com o básico: a ação e o conflito primário das batalhas, embalados em uma história de sobrevivência. Há filmes que se colocam desafios estéticos como 1917, O Resgate do Soldado Ryan e Reparação. Há os que questionam a guerra, no discurso verbal, mas fazem apologia a ela através da linguagem cinematográfica, como Apocalipse Now e Platoon. E há filmes de guerra que são verdadeiramente pacifistas como Além da Linha Vermelha e Nada do Novo no Front.

Na verdade é muito difícil fazer um filme de guerra verdadeiramente pacifista. O cinema pode chocar o espectador com a crueldade da guerra, transmitir o medo e a tensão. Mas a armadilha de cenas grandiosas, das manifestações de bravura e camaradagem, do espetáculo, enfim, que vangloria essa explosão de violência (ainda que num nível mais profundo do inconsciente) está sempre a espreita.

Nada de Novo No Front dribla essa armadilha com louvor. Há nele cenas grandiosas de combate, manifestações de ternura e camaradagem, mas essas, como todo o resto, escancaram a brutal inutilidade da guerra, da estupidez do conflito armado e do pensamento militarizado que alimenta, sempre, este conflito. Como ele faz isso? Em primeiro lugar, a obra acompanha uma turma de colegiais que decide se alistar, orgulhosos e impulsionados pelo espírito nacionalista, presente desde o colégio. Um deles, Paul, o protagonista, inclusive falsifica a assinatura dos pais que não querem que ele se aliste. A transformação que ocorre em Paul e seus amigos, de jovens sedentos de aventuras no alistamento para recrutas apavorados no campo de batalha e soldados trapos humanos nas trincheiras, expõe as vísceras da insanidade da guerra, despe-a de qualquer manto heroico. Esse processo de desumanização é expresso através de um trabalho de atores magistral, de direção de arte, luz e maquiagem fenomenais. E de um trilha sonora genial. Paralelo à absurda luta de trincheiras, o filme traz os bastidores das negociações para terminar a guerra, e expõe o espírito militarista prussiano que colocou a Alemanha nesse caminho e que, com a iminente derrota, “abandona” o poder, faz o kaiser abdicar para que os políticos, tão desprezados por eles, assinem o tratado da paz, que nada mais é que uma humilhante rendição.

O filme é absolutamente fiel, no espírito pacifista e no esmiuçar árido do processo de desumanização, ao livro homônimo de Erich Maria Remarque. Este romance foi um dos pioneiros da literatura pacifista que aflorou após a Primeira Guerra Mundial e tornou-se um clássico. Erich Maria, assim como Paul, deixou os bancos escolares para se alistar orgulhoso e enfrentar a mais insana das invenções humanas: a guerra. Foi ferido três vezes e sobreviveu a essa insanidade. Cinco anos depois da publicação de Nada de Novo no Front, sucesso imediato na Alemanha e no exterior, Hitler tomou o poder. Remarque, na véspera, mudou-se para Suíça. Seu livro antimilitarista foi, obviamente, banido pelos nazistas. Nada de Novo no Front – o filme, é a terceira adaptação do livro para cinema, a primeira de um cineasta alemão. Este grandiosa obra pode ser vista na Netflix.

Atualização em 13/03: O filme ganhou 4 Oscars em 2023 – Melhor filme Internacional, Melhor Fotografia, Trilha Sonora Original e Direção de Arte.

Nas Muralhas da Fortaleza

Filme de Hwang Dong-Hyuk, Coreia do Sul, 2017

O ano é 1636, o local, o reino de Joseon, na península que hoje chamamos de Península da Coreia. O Rei Injo está espremido entre duas dinastias que disputam o domínio da China: a Quing e a Ming. O exército Quing invade a península e o Rei consegue fugir para uma fortaleza nas montanhas, ao sul da capital. Sitiado com sua corte, poucos soldados e os aldeões da fortaleza, Injo deve decidir se capitula para as exigências dos Quing ou os enfrenta. Em suma, tem que optar pela sobrevivência com humilhação ou uma provável morte com dignidade. Curiosamente, este conflito (filosófico, mas também muito pragmático) é o cerne dramático do filme, e não a própria guerra que espreita logo abaixo das muralhas. Dois ministros conduzem esse debate, lutando pela atenção do Rei e dos vários outros conselheiros que o cercam, representando duas facções políticas. Junta-se aos conflitos político e militar o conflito social, o abismo entre nobres e o povo que padece de fome e frio durante o sítio. Este terceiro conflito insere um olhar contemporâneo no filme histórico que se passa em uma Ásia feudal.

A densidade dramática, assim como as muralhas da fortaleza, é solidamente construída. Percebe-se a mão segura e a sensibilidade apurada do diretor. Os figurinos e cenários, as cores do inverno na montanha gelada, as composições rigorosas dos planos, o uso de lentes longas que borram a profundidade, além do trabalho preciso dos atores, fazem parte dos instrumentos nessa orquestração que trata questões universais, atuais abordando uma realidade distante num episódio histórico quase esquecido.

O diretor Hwang Dong-Hyuk alcançou fama mundial com sua série Round 6. Assim como a série, o filme Nas Muralhas da Fortaleza, adaptado do romance histórico Namhansanseong (2007) de Kim Hoon, pode ser visto na Netflix.

Guerra, Cultura e Cancelamento

Em 1917, a Rússia se retirava da Primeira Guerra Mundial. O regime do Tzar havia caído e os bolcheviques assumiram o poder. Eram contra o imperialismo e a guerra entre os povos. Sua luta era contra os nobres, os latifundiários e industriais que exploravam camponeses e operários. Seu esforço de guerra era focado em defender a revolução recém instaurada que ostentava, entre outras, a bandeira do pacifismo. Dois anos depois, o regime comunista soviético fazia sua primeira incursão de guerra invadindo a Polônia. O objetivo era levar a revolução comunista a outros países europeus, chegando à Alemanha. Nesta guerra, a Polônia teve o apoio de várias nações  ocidentais e a participação efetiva da Ucrânia lutando ao seu lado. Ao final do conflito Lenin reconheceu a independência da Polônia, mas a Ucrânia foi anexada à União Soviética como a República Socialista Soviética da Ucrânia. Um dos destacamentos invasores, os cossacos da cavalaria vermelha, foi acompanhado por um comissário político que mais tarde escreveria o livro Contos da Cavalaria, apresentando a guerra de uma forma cruel e quase banal, despindo-a de toda aura de bravura e heroísmo que lhe conferiam outros obras. O autor, Isaac Babel tornar-se-ia um dos escritores mais promissores da União Soviética, até ser preso e assassinado por Stalin.

Um século e muitas reviravoltas depois, a invasão da Ucrânia pela Rússia encontra-se em sua terceira semana. O objetivo de Putin é derrubar o regime ucraniano atual e instaurar um governo fantoche, que distancie a Ucrânia de seus sonhos ocidentais e, principalmente, de aproximação com a OTAN. Ele chama isso de uma ação para desarmar e desnazificar o país vizinho. O contexto pode ser melhor entendido vendo o filme Winter on Fire.  Assim como no caso da invasão da Polônia há cem anos, a Ucrânia conta com apoio de vários países ocidentais, que lhe fornecem armamentos e aplicam sanções econômicas contra a Rússia. Nesses tempos de redes sociais e extrema polarização junta-se às sanções econômicas um chamado para o boicote cultural. Algo que desvia um mecanismo de pressão não bélico para a xenofobia. Chegou-se ao absurdo de uma prestigiada universidade de Milão ter cancelado um curso sobre Dostoievsky (que após protestos foi devidamente descanelado). Em Florença houve pedidos que a Câmera Municipal retirasse a estatua desse mesmo autor, inaugurada há três meses para marcar o seu segundo centenário. Justo Dostoievsky que foi condenado à morte pelo regime do Tzar por ter lido em público uma carta à Gogol. Segundos antes da execução, já na praça de fuzilamento, chegou a ordem imperial de comutar a pena para prisão com trabalhos forçados. Apesar do susto, a vida do escritor foi poupada. Não foi o caso de Babel. Estes são apenas dois exemplos de artistas que foram severamente castigados por expressões contra ações e condutas ditatoriais. Hoje na Rússia há várias pessoas presas por protestar contra a guerra de Putin. Houve várias manifestações de artistas contra a invasão. Sem falar que há anos as obras de autores como Puschkin, Gogol, Tolstoi, Gorki, Tchekhov, Svetlana, Pasternak, Grossman, Bulgákov, além dos acima mencionados e muitos outros, tornaram-se um patrimônio da cultura universal.

Em outras palavras, um cancelamento da cultura russa é tão absurdo, tão impróprio  e despropositado quanto à guerra que Putin resolveu protagonizar.

A Casa do Baralho, ep. de hoje: O Presidente Vacinado

O presidente B foi pra Rússia, descansar um pouco do verão brasileiro. Bem quando uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia está prestes a estourar.

— E daí — disse o presidente ao ser questionado pelo timing — cada país tem os seus problemas com esse tipo de coisa, os americanos andaram também invadindo e anexando territórios de outros países, nós mesmo tivemos esse tipo de problema com o Acre, por exemplo.

Os jornais americanos apontam o motivo da viagem como uma desfeita para Bite-me que nunca o convidou para uma visita, nem mesmo ligou para B desde sua posse. Os economistas dizem que ele vai a mando da Bancada do Boi, garantir o fertilizante russo no prato dos brasileiros. Seus seguidores juram que vai numa missão de paz, salvar o planeta de uma terceira guerra mundial. A oposição alerta que viaja em busca do apoio russo nas eleições, na forma de bombardeio de fake news e hackeamentos durante a campanha. Por isso a inclusão do filho 02, coordenador do gabinete do ódio, na comitiva.

Mas não é nada disso. A Casa do Baralho descobriu, num furo espetacular, o verdadeiro motivo. Desde que seu mestre Tramposo foi vexatoriamente defenestrado da Casa Branca, B voltou-se a Rasputin como seu novo guru. O cara se mantém no poder há mais de vinte anos, num país com eleições regulares e limite do mandato presidencial. Enquadrou a oposição, a imprensa, o judiciário e o legislativo. B quer contratá-lo como coach. A primeira lição seria ver in loco como ele sustenta o blefe da invasão da Ucrânia para afastar a OTAN de seu quintal, sem disparar um tiro. B também havia criado situações de tensão no Brasil ameaçando golpe, mas todas as vezes acabou recuando de maneira vexatória. Seria uma aula de grande valia.

Logo que ficou a sós com o mandatário russo, Rasputin tocou uma sineta e uma enfermeira do exército entrou com uma bandeja prateada contendo uma seringa e um frasquinho.

— Essa aqui é a Sputnik, a melhor vacina contra a covid-19 — disse ela com sotaque carregado.

— A Putin que o pariu com essa seringa, eu não vou tomar vacina nenhuma! — apavorou-se B.

Vai sim, dizia o sorriso gélido do presidente russo.

— Tô fora, com licença — disse B, procurando a saída. Em um átimo de segundo foi atingido por um golpe de Rasputin que o dominou por trás e ainda arregaçou sua manga. B, apavorado, viu a enfermeira agulhando o frasco, sorvendo o liquido para dentro da seringa e se aproximando dele.

— Eu fiz todos os testes que tu pediu, deu negativo, usei máscara quando desci do avião. Por favor, seringa nããão!

— Se relaxar a musculatura vai doer menos — orienta a enfermeira.

B, sem outra alternativa, relaxou. E tomou a Sputnik.

— Essa foi a primeira lição de nosso programa de coaching. — explicou Rasputin. — Conheça bem o adversário, descubra seus pontos fracos e ataque por ali. A gente descobriu que tu tem um terror atávico de injeção e vacina. E preparamos uma pequena surpresinha. Esse é outro fator importante: ataque sempre de surpresa. Além dessas lições essenciais, você ganhou um bônus: tá vacinado. E não te preocupa, o segredo fica entre nós. A não ser que você saia da linha.

Continuará B no programa de coaching? Interferirão os hackers russos nas nossas eleições? E o presidente, seguirá na linha do Rasputin? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

Fuga

Filme de Jonas Poher Rasmussen – Dinamarca – 2021.

Um dos ótimos filmes que pude assistir no Festival É Tudo Verdade foi o documentário em animação Fuga, premiado, entre outros, no Sundance Festival.  Documentário e animação são dois formatos que raramente se misturam; de um documentário se espera imagens reais e não desenhos animados, embora se aceite o uso de encenação e atores, em live action, para ilustração de um depoimento, reconstituição de um evento ou para narração.

Dois exemplos de documentários de animação de longa-metragem que revolucionaram conceitos são Valsa Com Bashir (2008) e A Onda Verde (2010). Fuga (ou Flee) junta-se a esses exemplos como um retrato documental da realidade que não poderia ser feito de outra forma a não ser pelo desenho animado. Neste caso o filme é ancorado numa pessoa que deseja permanecer incógnita e ganha, portanto, um avatar animado;  sua história cobre um longo período do passado e envolve situações como tráfico humano e contrabando de refugiados, em que são raros os registros de imagens; e, o mais importante, o filme se constitui numa espécie de catarse, de processo terapêutico para seu protagonista. Lembranças, traumas e sonhos compõem essa história e filmar o inconsciente é ainda mais complicado do que registrar a ação ilegal de contrabando de pessoas. No desafio de mergulhar nas profundezas da psique, Fuga tem muito a ver com Valsa com Bashir, dois soberbos escafandristas da alma.

Fuga, filme como processo terapêutico

Jonas Rasmussen, então adolescente, conheceu Amin Nawabi (pseudônimo) quando este ingressou na sua escola. Soube que era refugiado do Afeganistão e que chegou sozinho à Dinamarca. O pai desapareceu após ter sido preso em Cabul e sua mãe e irmãs foram assassinadas na sua frente. Jonas e Amin tornaram-se amigos, mas Amin nunca conseguiu falar sobre seu passado. Aos 36 anos, prestes a se casar, Nawabi decidiu contar sua verdadeira história para o amigo cineasta, com a condição de não aparecer no filme. No final surpreendente se entende o motivo do anonimato, motivo que vai além de um bloqueio emocional.

Fuga tem desenhos simples e animação em 2D, mas não se engane, a estética é impactante, tanto na recriação imagética das memórias que se mesclam com imagens de arquivo e filmes caseiros em super 8 e, principalmente, nos momentos dramáticos, quando a animação expressa de maneira sofisticada e visceral os sentimentos do refugiado.

A odisseia de Amin, narrada nesse processo terapêutico, quase detetivesco, lança luz diferente sobre o tema dos refugiados, um dos grandes problemas globais do início do século XXI. O depoimento pessoal, o ponto de vista íntimo, expõe a dimensão mais profunda do processo emocional de quem se vê, de repente, despido de seus direitos, de sua dignidade e, imerso em fragilidade, a mercê de burocratas, criminosos e autoridades abusivas. Telenovelas mexicanas, tesão pelo Van Damme, lembranças da infância e a força dos laços familiares são o contraponto à sucessão de tragédias e à intensidade dramática do calvário de Amin.

Fuga é uma coprodução internacional entre empresas e instituições da Dinamarca, França, Suécia, Noruega, EUA, Eslovênia, Estônia, Espanha e Itália. Os idiomas falados no filme são dinamarquês, inglês, dari e russo. O filme será lançado comercialmente em junho de 2021 na Dinamarca. Esperemos que chegue rapidamente ao Brasil e que possa ser visto, quando aportar por aqui, nas salas de cinema.

Casa do Baralho, episódio de hoje: A Arte da Guerra

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Aviso: esta série é uma obra coletiva, escrita por vários roteiristas. Alguns se conhecem, outros não. O fato é que um não sabe o que o outro está fazendo.

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

O presidente capitão de reserva B não entende por que todo mundo cai de pau em cima dele. Quando fez pouco da pandemia, foi criticado. Agora que está tratando do assunto como uma guerra, segue sendo objurgado. O problema é que boa parte dos cidadãos, infelizmente, tem uma mentalidade civil, ou seja, não entende nada de guerra. Os políticos, os juízes e a imprensa lixo não fogem dessa regra. Porra, como tudo é mais fácil em um ambiente militar.

Os civis exigem “transparência”. Eles estão brincando? Não sabem que esconder o jogo, criar uma cortina de fumaça é estratégico? Foi assim com a cloroquina. “Não há comprovação científica de que é eficaz!!!”, bradavam. Que que interessa isso daí se tá ou não comprovado, se é ou não é verdade? Se o inimigo achar que tu tem uma arma poderosa contra ele, ele vai recuar. É isso que importa. Então toca a produzir cloroquina e divulgar que nem louco que ela mata o vírus. E aí, o que eles fazem? Alertam os gansos. Pior ainda, vociferam que o medicamento pode matar o paciente, por efeitos colaterais. Aí sim o vírus se encheu de coragem e intensificou as suas ações. Esse vírus é porreta. Não negocia, não recua, não abre as pernas pra ninguém. Queria ser como ele, porra. Virulento.

O pessoal quer a “verdade”. A verdade é que estamos em guerra. Guerra!!! E o Brasil, em vez de dar graças a Deus por ter um líder que entende do assunto, com um histórico militar invejável (até ser “aposentado”), fica atrapalhando. Porra, o presidente capitão de reserva foi obrigado a dar um golpe de estado dentro do próprio Ministério da Saúde. Teve que se livrar dos doutores e colocar no lugar generais experimentados em combate. Estrategistas de primeira ordem. Logo perceberam que todas as encomendas de testes, respiradores e máscaras só escancaravam para o inimigo a fragilidade da situação. Cancelaram imediatamente todos os pedidos. As pessoas não entendem que uma guerra não é sobre salvar vidas, é sobre destruir o inimigo. E quando não dá pra destruir diretamente o inimigo, tem que usar de astúcia, contornar a situação. Então os generais resolveram, ao invés de atacar frontalmente o vírus, atacar os números. Divulgaram bem pequenininho os dados de infectados e mortos e colocaram em destaque o número de curados. Isso iria abalar o moral do corona. Não abalou. Aí decidiram radicalizar na manobra, eliminar os dados. O apagão de informações deixaria o inimigo no escuro. O vírus, atônito, perderia logo o rumo, seria um xeque-mate. Mas aí os civis e as suas instituições resolveram novamente atrapalhar. Não só gritaram e espernearam (isso não tem problema, é até divertido), mas resolveram criar, eles mesmos, seus bancos de dados para divulgar os números, sabotando a estratégia governamental. Aí teve que recuar e voltar a divulgar, para poder ainda ter algum poder sobre os números. Só que agora o vírus tá esperto. Não confia mais nos dados oficiais manipulados pelos soldados e oficiais.

Porra, por que não o deixam trabalhar? Não se dão conta que ganhou a guerra das eleições, sem partido, sem exército, quase sem dinheiro, usando unicamente as poderosas armas de camuflagem e dissimulação? Os outros candidatos também mentiam, mas ninguém vendia lorota com tanta sinceridade. Nenhum deles inovou, nem ousou como ele: foi além das fake news, criou a fakada. É assim que se encara uma guerra. Então, se ele conseguiu convencer (ou confundir) 58 milhões de brasileiros, não vai conseguir vencer um vírus?

Não perca nos próximos episódios da Casa do Baralho.

Casa do Baralho, episódio de hoje: O Plano Econômico

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O capitão paraquedista de reserva B, em campanha presidencial, enchia a boca para dizer que não entendia bulhufas de economia. Confiava esse assunto cegamente ao seu futuro ministro PG. Fingia-se de morto, como se diz no jargão militar, ou seja, simulava ignorância para enganar o inimigo, pois desde aquela época acalentava um sonho que continha a solução final para a crise que assola os brasileiros. As reformas previdenciária, tributária e outras árias, ele bem sabe, são paliativos para deixar o mercado contente, não para fazer crescer a economia. E a popularidade de seu governo está diretamente atrelada ao sucesso, ou ao fracasso do combate à recessão. Assim que foi empossado começou a executar a sua estratégia, sem fazer alarde, enquanto as reformas ocupavam as manchetes. Mal anunciou que iria acabar com a “indústria das multas”, o seu super ministro veio reclamar. Estava se matando para aumentar a arrecadação do governo. Acabar com as multas nesse momento de pindaíba não ajudava muito. Os olhos de B brilharam com aquele brilho típico de quem vai tirar um Ás da manga, um Ás advindo do universo da sabedoria e inteligência que lhe rendeu a alcunha de Mito.

— Muito antes pelo contrário — respondeu o presidente. — Não só ajuda, como resolve.

PG, surpreso, arregalou os olhos, como quem pergunta: como é?

— Qual é a ligação entre legalizar todos os agrotóxicos, eliminar os radares nas estradas, acabar com as multas, liberar a polícia pra atirar em quem achar suspeito, queimar a floresta e flexibilizar o porte de armas? — charadeou o mandatário.

PG olhou para ele sem saber o que dizer. B, triunfante indicou:

— Segue o meu raciocínio.

É mais fácil cobrir o rombo da previdência, pensou PG, mas nada disse, apenas tirou os óculos e limpou as lentes.

— Um dos grandes problemas da crise econômica no Brasil é o desemprego, tô certo? Teus colegas especialistas tentaram criar mais vagas com a reforma trabalhista, com a terceirização e nada disso resolveu isso daí. Tô certo? Então, tem que pensar um pouco fora da casinha.

Fora da caixinha, corrigiu o ministro, mas apenas em pensamento. Não era louco de interromper o golden shower de ideias do seu chefe.

— Se as pessoas comerem veneno, vão morrer; se correrem na estrada vão se matar e matar os que não correm; com o fim da floresta vão padecer, e pra acelerar isso daí, nada melhor que liberar arma de fogo pra todo mundo. Com toda essa gente morrendo vai sobrar vaga e o desemprego já era.

PG virou-se discretamente para um assessor imaginário, e pediu (em pensamento) que o beliscasse, só poderia estar tendo um pesadelo. Concluiu que o presidente estava certo: fora da casinha era, enfim, o termo mais correto. B interpretou seu embasbacamento como admiração e seguiu, orgulhoso.

— E quem não morrer vai ficar ferido, doente, vai ser hospitalizado. Isso vai esquentar a economia na saúde, nos seguros, nos caixões, tá me entendendo? Pensa só o quanto eu movimento a economia cada vez que eu me interno. Imagina isso multiplicado por milhões! E não só vai acabar com o desemprego como vai, finalmente, eliminar a pobreza. Pobre não pode comprar arma, tô certo? Vai dançar. Não pode comprar alimento orgânico, tô certo? Vai bailar. E pra completar o serviço, a polícia vai entrar nos morros e atirar em quem resolveu, apesar de tudo isso daí, não morrer. Liquida a pobreza e a economia informal, que não paga imposto, na mesma tacada.

O plano econômico de B não para por aí, é bem mais ambicioso. Uma guerra mataria em escala muito maior do que todas essas medidas juntas. Este é seu grande sonho, desde que foi expulso das forças armadas: comandar o Brasil numa guerra. Teve uma oportunidade de ouro, tão logo assumiu o governo, de atacar a Venezuela cujo regime estava caindo de Maduro. Mas o exército, logo o exército, jogou água fria no seu entusiasmo. Agora ele está tentando cavar uma nova chance. Comprou briga com a chanceler alemã que o criticou, mandou a primeira ministra da Noruega enfiar o dinheiro do fundo bem lá no fundo, agrediu do nada a ex-presidente chilena. Quando levou pau do chefe do governo francês ficou atordoado, pois sua beligerância é hétero. Logo um seguidor no twitter lhe deu a deixa para o contragolpe: atingir o Maucron chamando a primeira dama de feia. Foi um movimento altamente sofisticado no intricado tabuleiro das relações internacionais.

— A maior lição que a história nos ensina — esclarece ele ao seu super ministro — é que a guerra é o melhor remédio para uma crise econômica. Não foi assim que os Estados Unidos saíram da grande depressão em 1939?

Depende – corrige (só em pensamento) o apavorado ministro,– primeiro tem que vencer a guerra. Os generais da Argentina de 1982 que o digam. Foram bulir justamente com a Iron Lady e levaram ferro.

 

Logrará o presidente tirar o Brasil da recessão? Usará a foto que tirou no hospital junto ao filho a(r)mado como símbolo da campanha de seu plano ambicioso? E a pergunta que está caindo de madura: desvendará a PF quem mandou matar Marielle? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho.