A Febre

Filme de Maya Da-Rin – Brasil – 2019.

A Febre é um filme surpreendente. Sem arroubos dramáticos, planos mirabolantes ou uma trama intrincada, vai envolvendo o espectador como uma corrente de águas profundas que correm silenciosas sob os nossos pés. Há tempos não assistia uma combinação tão bem sucedida de ousadia e sensibilidade. Maya Da-Rin, em seu primeiro longa de ficção, consegue imprimir uma marca autoral muito forte na estética e nas temáticas que aborda.

Nos créditos iniciais, a obra já apresenta seu cartão de visitas: uma orquestra de grilos e ruídos da mata, antecipando que se trata de um filme que valoriza o som. A orquestra segue sua sinfonia junto a primeira imagem, um plano frontal do protagonista na frente de uma textura metálica. A câmera recua aos poucos, não em travelling contínuo, mas em pequenos afastamentos e paradas. À medida que o close de Justino torna-se um plano médio, agrega-se aos zumbidos da floresta o som metálico de trabalho da cidade. A textura do fundo ganha vida num enigmático jogo de luzes. Logo entenderemos que é um contêiner na noite movimentada do porto de Manaus. Justino, com seu capacete de operário, tem uma expressão sofrida, sonolenta. Há claramente um processo interior fervilhando por baixo daquele capacete. Processo pronunciado pelo duelo/dueto entre os zunidos da floresta e o som da cidade. A Febre dispensa o uso de música na construção do clima emocional da obra e de seus personagens; sua trilha sonora, composta de ruídos de ambiente, assume essa função e expressa o mundo interior de Justino ao longo de todo o filme. Felippe Schultz Mussel assina o desenho de som.

Justino é um ser territorial e A Febre é um filme territorial. A cidade de Manaus é o espaço/ringue dos conflitos do protagonista. O desenho de luz e, principalmente, a composição dos quadros constroem (como uma poesia) a tensão entre asfalto e floresta; mapeiam, desenham e embaralham os territórios e fronteiras dos dois mundos que se digladiam no coração de Justino. Nos enquadramentos de A Febre, o porto é uma coreografia de contêineres e máquinas que escondem o rio, e  a cidade parece estar prestes a ser invadida pela mata. A direção de fotografia é da uruguaia-argentina Barbara Alvarez.

A Febre, disputa territorial entre floresta e asfalto.

O trabalho de atores soma-se ao som, à direção de arte e à fotografia na tessitura deslumbrante de A Febre. Todos – indígenas e não indígenas, profissionais  ou atores de primeira viagem – atuam muito bem, mas Regis Myrupu (Justino) e Rosa Peixoto (sua filha Vanessa) são os grandes destaques. Constroem personagens singularmente carismáticos, interessantes e profundos. Suas falas e silêncios, olhares, expressões e movimentos dão esteio ao ritmo lento do filme, aos planos de longa duração; conferem importância dramática a ações corriqueiras e conversas aparentemente banais. Além disso, pai e filha personalizam a diferença das duas gerações em relação à “integração” ao mundo dos brancos, ou ao afastamento do seu modo de vida. Regis e Rosa colaboraram também na qualificação do roteiro, trazendo o ponto de vista Desana para uma obra de realizadora não indígena.

Regis Myrupu e Rosa Peixoto, Justino e Vanessa.

A Febre é bilíngue, mais uma entre várias ousadias. O português e tukano se misturam nas conversas de Justino e seus familiares. Uma das cenas mais tocantes que remete à riqueza linguística indígena é o diálogo entre Vanessa e uma índia mais velha trazida ao hospital onde a jovem trabalha. As duas falam idiomas diferentes e uma não entende a outra. No entanto, se estabelece uma conexão que perpassa o entendimento da conversa.

A Febre é um drama intimista sobre um homem em crise existencial. Sendo este homem um indígena, que deixou sua aldeia há 20 anos para viver em Manaus, o drama intimista ganha outra dimensão e se torna representativo de um povo e um meio de vida que vem sendo massacrado há meio milênio. Na sensibilidade do olhar sobre o outro e na abordagem do processo de aculturação, o filme me lembrou outra obra impactante, o israelense Tempestade de Areia.

A Febre foi premiado no festival de Brasília com os candangos de melhor filme, melhor direção, melhor som, melhor fotografia e melhor ator principal. Regis Myrupu ganhou também o prêmio de melhor ator no Festival de Locarno, na Suíça. A Febre pode ser visto na Netflix.

Macunaíma – O Herói Sem Nenhum Caráter

Livro de Mário de Andrade – 1928

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Retrato do autor por Lasar Segall -1927

Há quase cem anos era publicado Macunaíma – O Herói Sem Nenhum Caráter. Oitocentos exemplares bancados pelo próprio autor foram a tropa de choque dessa obra que viria a ser editada e reeditada, criticada e elogiada, semeadora de influências, mas que jamais gerou filhos parecidos. Macunaíma, para os íntimos, foi naqueles tempos de modernismo algo muito diferente do que se entendia como literatura e continua uma obra literária incomum até os dias de hoje.

O livro – rapsódia, romance, ensaio antropológico, sátira? – é uma colcha de retalhos de lendas indígenas, mitos regionais de todas as partes do Brasil, contos épicos gregos e nórdicos que, costurados, narram a “saga” de Macunaíma, um índio preto que, ao entrar em águas encantadas, se transforma em um louro de olhos azuis, abandona as matas onde nasceu e vai até a grande cidade de São Paulo tentar recuperar um talismã, uma lembrança preciosa de sua amada, que se tornou uma estrela no céu. Ao contrário das epopeias antigas, Macunaíma é um herói não exemplar. É preguiçoso, manhoso, busca apenas seus próprios prazeres e um desses prazeres é sacanear o próximo. Apesar dessa imoralidade, desperta simpatia e guarda (muito bem guardadas) algumas qualidades. Por isso, e por ser o “pai” de todos os brasileiros, tem a torcida do leitor ao seu lado na luta contra o gigante Venceslau Pietro Pietra.

Muito se discutiu, escreveu, analisou sobre os simbolismos da obra que, embora de leitura fluente e muito divertida, oculta complexidades diversas. Cabe ao leitor buscar se aprofundar nesse universo de representações na medida de seu interesse. Algumas são explícitas no texto, outras não. O próprio autor negou a característica simbólica da obra, depois, como não poderia ser diferente, negou a sua negação. Macunaíma é o brasileiro, Pietro Petra é o estrangeiro – europeu.

A quebra da linguagem convencional é um dos pontos fortes de Macunaíma, que satiriza abertamente o formalismo da literatura da época. “Mas cair-nos-íam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curiosidade original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra”, relata o herói em uma carta. Além de frases e diálogos que soam exatamente como a linguagem popular, contraposta ao português escrito, o livro é repleto de termos indígenas e africanos que dão musicalidade e ritmo ao texto, confrontam e integram as culturas que formam o caldo brasileiro e definem a identidade nacional que Mário de Andrade busca na obra e a caracteriza pela… ausência de caracterização. Assim, o caráter ganha duplo sentido: moral e definidor de personalidade e o herói sem nenhum caráter é também um comentário sobre a cultura brasileira em formação, que busca a sua cara. Outro ponto forte da obra é o humor sagaz e autocrítico que permeia todas as linhas e nos faz refletir sobre a nossa experiência como civilização, não apenas brasileira, mas humana. O sexo que é brincadeira e também violência, as máquinas que são homens e os homens que são máquinas, as versões de fé cega e ciência que criamos em nossas visões de mundo, o delicioso capítulo sobre o ritual da macumba, as fugas e perseguições espetaculares que desenham mapas de geografia e tempos fantásticos. Todos esses elementos estão articulados de maneira magistral numa obra escrita em poucos dias de férias, mas calcada em anos de pesquisa, que começou como uma brincadeira e acabou como um marco da cultura brasileira.

Mário foi poeta, escritor, folclorista, musicólogo, etnólogo, crítico de artes plásticas e de literatura, professor, jornalista, fotógrafo, modernista entre outras coisas. Acima de tudo era brasileiro. O que isso significa exatamente? A resposta está em Macunaíma.

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