Belfast

Filme de Kenneth Branagh, Reino Unido 2022

Agosto de 1969, um dia lindo de verão em Belfast, Irlanda do Norte. Buddy, um guri de nove anos, brinca nas ruas de seu bairro, em escaramuça com dragões imaginários, até ouvir um terrível barulho que precede uma horda furiosa de pessoas armadas de paus e pedras. Atônito, vê seu bairro se transformando, do nada, numa praça de guerra. Era o estouro de um conflito que ceifaria vidas por quase quarenta anos.

Março de 2020. O ator e diretor Kenneth Branagh passeia com seu cachorro nas ruas estranhamente silenciosas de Londres. Em função das restrições da Covid ele pode novamente ouvir os sons de pássaros, como na sua infância em Belfast há 50 anos. Essa lembrança sonora evoca outras memórias que ele percebe que estão presas, guardadas feito fantasmas num armário. Ele pensa que está na hora de lidar com elas, deixá-las sair. No dia 23 de março assiste na TV o primeiro ministro decretar lockdown na Inglaterra. Decide que neste período de confinamento irá desconfinar os fantasmas, escrevendo o roteiro de Belfast.

Belfast, Buddy observa a transformação do bairro numa praça de guerra.

O filme não é estritamente autobiográfico, mas as memórias de Kenneth sedimentam fortemente a obra, principalmente o início impactante, o momento de ruptura do menino com a sua vida anterior, quando o parque de diversões que era seu bairro e a fortaleza protetora que era sua comunidade, viram caos. As lembranças de dias cinzentos predominantes, pelos raros momentos de sol, ditaram a opção por filmar em preto e branco as ruas que se fixaram monocromáticas em sua mente. O cinema e o teatro, no entanto, são coloridos, seus tons exuberantes contrastam com a realidade gris, refletindo o fascínio que exerciam sobre o garoto. Se as cenas de tumulto no início mostram um diretor virtuose na misancene e na elaboração de planos complexos, esses momentos mais íntimos revelam sutilezas, como o reflexo do filme colorido nos óculos da avó de Buddy em preto e branco. A avó, interpretada magistralmente por Judi Dench, protagoniza outro dos momentos impactantes, o final do filme. É uma cena intimista, muito diferente do alvoroço inicial, mas não menos arrepiante.

Belfast foi  rodado  no relaxamento do primeiro lockdown com um protocolo severo que tornava os dias de filmagens mais curtos, o que exigia decisões rápidas e uma grande disciplina no set. Com a experiência do diretor e um time de colaboradores talentosos na equipe e elenco (e uma boa dose de sorte, principalmente de dias bonitos nas externas), o filme foi rodado em 35 dias. Muitos o classificam como um filme coming of age (um filme de formação) no qual o protagonista passa pela transição de infância para a juventude, ou de adolescente para um jovem adulto. No entanto, apesar do protagonismo de Buddy, Branagh consegue inserir um olhar adulto nos dramas que os pais e avôs do menino enfrentam. É como se ao lado da perspectiva infantil surgisse um olhar em retrospecto de um adulto sobre si como criança; ao lado dos idealizados Ma e Pa, apresentam-se conflitos dolorosamente mundanos. O plano de abertura, uma Belfast atual, moderna e filmada em cores que antecede o mergulho no passado, já sugere essa dualidade de perspectivas. E isso confere ao filme uma dimensão dramática instigante. Falando em dualidade, há que se destacar outro momento alto de Belfast, a sequencia que interliga luto e celebração à vida, ao som de Everlasting Love. Nessa sequencia o diretor consegue evitar as armadilhas do adocicamento exagerado, presente em alguns momentos.

Belfast obteve vários prêmios, entre eles  o prêmio BAFTA de melhor filme britânico, o Globo de Ouro e o Oscar para melhor roteiro original. É um filme para ser visto na grande tela dos cinemas.