The Crown – 6a temporada

Série- Criação de Peter Morgan, Reino Unido- 2023

Em 1984 morei em Londres. Foi o ano em que nasceu O príncipe Harry, segundo filho de Diana e Charles. Esse foi virtualmente o único assunto dos meios de comunicação naqueles dias, com repórteres entrevistando pessoas nas ruas, perguntando sua opinião inclusive sobre o nome dado para o recém-nascido, Henry Charles Albert David de Gales. Era de estarrecer a importância que davam à família real britânica, especialmente com a popularidade imensa da princesa Diana que era, naquele conto de fadas, a princesa e a fada ao mesmo tempo.

Essa lembrança aflorou agora, ao ver os episódios iniciais da sexta e última temporada de The Crown, quase quarenta anos depois. Isso porque o assunto Diana é certamente um dos catalizadores mais fortes dessa série sobre a família real britânica, que soube recriar com maestria a comoção gerada pelo fenômeno Lady D e todas as consequências e reflexões que dele derivam.

Elizabeth Debicki, na pele de Lady D

A atriz Elizabeth Debicki encarou o desafio gigantesco de interpretar um personagem real que ainda está vivo na memória das pessoas e fez um grande papel como a jovem princesa nas temporadas 5 e 6, dando forma e profundidade ao mito e à pessoa.

Mas Lady D não inspirou apenas a sua interprete. Os episódios em torno de Diana são os mais criativos e sólidos em termos do roteiro, da performance de outros atores (que não estão tão bem em outros momentos da série, como seu marido Charles) e da direção, que chega ao ápice na sequencia que culmina com a morte da princesa. Nesses episódios, principalmente nos que abrem a sexta temporada, há mais questionamentos profundos de ordem social, filosófica e psicológica do que no resto da série. E uma exposição intricada sobre a família real que segue nos episódios sobre Will e Harry, os filhos de Diana.

Por fim, o último episódio volta a ter a Rainha Elisabete como personagem central, alguém ciente de que sua vida está se aproximando ao fim, nos preparatórios de seu jubileu como monarca. Ela pensa inclusive em se “aposentar”, porém continuará reinando por vinte anos ainda até sua morte em 2022. Este último episódio, refletindo sobre o começo do fim, fecha a série com chave de ouro.

The Crown pode ser vista na Netflix. Para ler a resenha sobre as 5 temporadas anteriores clique aqui.

The Crown

Série – 5 temporadas, criação de Peter Morgan – Reino Unido 2016-2022

A Rainha Elizabeth II faleceu aos 96 anos em setembro de 2022, dois meses antes da estreia da quinta temporada da série em que é personagem principal. Não, não é uma série documental, nem  de cunho biográfico. É uma obra dramática que reflete sobre o papel da monarquia na era moderna, que vai do pós guerra mundial até o fim do século XX, época que coincide com o reinado de Elizabeth. Cada temporada tem dez episódios e cobre mais ou menos uma década. O que significa uma troca de atores para os papeis principais a cada duas temporadas.

Nesse meio século que a obra cobre ela mantém um alto nível na direção de arte e no trabalho das atrizes e (um pouco menos) dos atores. No  entanto há momentos de altos e baixos no roteiro e principalmente na tentativa de passar o significado da realeza para o povo britânico. Quando a série levanta o questionamento se há sentido manter a instituição monárquica em tempos modernos, ela faz isso muito bem. Quando trata de apresentar o contraponto, ou seja transmitir que apesar dos apesares, uma figura como a rainha Elisabeth tem um papel preponderante como elemento de união acima de diferenças políticas/culturais, ela já não é tão convincente. Há também uma variação na profundidade do enredo que migra entre situações dramáticas complexas e episódios que tratam do escândalo pelo escândalo, quase no estilo dos famosos tabloides britânicos.

Para mim, os pontos altos do drama encontram-se na primeira temporada, que aborda todo o contexto de Elisabeth assumindo o trono, muito jovem; na quarta temporada, em que Tatcher é a primeira ministra e a relação entre as duas líderes mulheres entra em descompasso;  e na quinta temporada, quando Lady Diana e seu casamento falido roubam a cena, escancarando o peso de carregar uma coroa, ou de estar próximo a quem a carrega. Essa temporada mostra também como uma instituição de alto prestígio como a BBC pode derrocar para um comportamento de tabloide. O que aprofunda ainda mais o questionamento sobre instituições com  “credibilidade acima de qualquer suspeita”.

Haverá ainda uma sexta e última temporada. As filmagens foram interrompidas por uma semana quando a monarca faleceu e deve estrear no final de 2023. Você pode ver as cinco temporadas de The Crown na Netflix.

Veja o trailer da 5a temporada

Belfast

Filme de Kenneth Branagh, Reino Unido 2022

Agosto de 1969, um dia lindo de verão em Belfast, Irlanda do Norte. Buddy, um guri de nove anos, brinca nas ruas de seu bairro, em escaramuça com dragões imaginários, até ouvir um terrível barulho que precede uma horda furiosa de pessoas armadas de paus e pedras. Atônito, vê seu bairro se transformando, do nada, numa praça de guerra. Era o estouro de um conflito que ceifaria vidas por quase quarenta anos.

Março de 2020. O ator e diretor Kenneth Branagh passeia com seu cachorro nas ruas estranhamente silenciosas de Londres. Em função das restrições da Covid ele pode novamente ouvir os sons de pássaros, como na sua infância em Belfast há 50 anos. Essa lembrança sonora evoca outras memórias que ele percebe que estão presas, guardadas feito fantasmas num armário. Ele pensa que está na hora de lidar com elas, deixá-las sair. No dia 23 de março assiste na TV o primeiro ministro decretar lockdown na Inglaterra. Decide que neste período de confinamento irá desconfinar os fantasmas, escrevendo o roteiro de Belfast.

Belfast, Buddy observa a transformação do bairro numa praça de guerra.

O filme não é estritamente autobiográfico, mas as memórias de Kenneth sedimentam fortemente a obra, principalmente o início impactante, o momento de ruptura do menino com a sua vida anterior, quando o parque de diversões que era seu bairro e a fortaleza protetora que era sua comunidade, viram caos. As lembranças de dias cinzentos predominantes, pelos raros momentos de sol, ditaram a opção por filmar em preto e branco as ruas que se fixaram monocromáticas em sua mente. O cinema e o teatro, no entanto, são coloridos, seus tons exuberantes contrastam com a realidade gris, refletindo o fascínio que exerciam sobre o garoto. Se as cenas de tumulto no início mostram um diretor virtuose na misancene e na elaboração de planos complexos, esses momentos mais íntimos revelam sutilezas, como o reflexo do filme colorido nos óculos da avó de Buddy em preto e branco. A avó, interpretada magistralmente por Judi Dench, protagoniza outro dos momentos impactantes, o final do filme. É uma cena intimista, muito diferente do alvoroço inicial, mas não menos arrepiante.

Belfast foi  rodado  no relaxamento do primeiro lockdown com um protocolo severo que tornava os dias de filmagens mais curtos, o que exigia decisões rápidas e uma grande disciplina no set. Com a experiência do diretor e um time de colaboradores talentosos na equipe e elenco (e uma boa dose de sorte, principalmente de dias bonitos nas externas), o filme foi rodado em 35 dias. Muitos o classificam como um filme coming of age (um filme de formação) no qual o protagonista passa pela transição de infância para a juventude, ou de adolescente para um jovem adulto. No entanto, apesar do protagonismo de Buddy, Branagh consegue inserir um olhar adulto nos dramas que os pais e avôs do menino enfrentam. É como se ao lado da perspectiva infantil surgisse um olhar em retrospecto de um adulto sobre si como criança; ao lado dos idealizados Ma e Pa, apresentam-se conflitos dolorosamente mundanos. O plano de abertura, uma Belfast atual, moderna e filmada em cores que antecede o mergulho no passado, já sugere essa dualidade de perspectivas. E isso confere ao filme uma dimensão dramática instigante. Falando em dualidade, há que se destacar outro momento alto de Belfast, a sequencia que interliga luto e celebração à vida, ao som de Everlasting Love. Nessa sequencia o diretor consegue evitar as armadilhas do adocicamento exagerado, presente em alguns momentos.

Belfast obteve vários prêmios, entre eles  o prêmio BAFTA de melhor filme britânico, o Globo de Ouro e o Oscar para melhor roteiro original. É um filme para ser visto na grande tela dos cinemas.

O Espião Perfeito

John Le Carré

Quando eu tinha doze anos, peguei da biblioteca dos meus pais um livro com uma capa sombria e um nome esquisito: O Espião que Saiu do Frio. Naquela época, minha referência de livros de espionagem eram os livretos de aventura de Patrick Kim, um agente secreto tipo James Bond, cujas peripécias eram recheadas de pancadaria e sexo. Apesar da capa e do título que despertaram minha curiosidade, achei o texto muito chato. Uns quatro anos depois, reli e fui fortemente fisgado: estava pronto para o contato com a escrita rebuscada de John Le Carré. Senti, mesmo sem conhecer os termos, que aquele era um texto diferente, que conseguia integrar os truques sedutores dos best-sellers com literatura de águas mais profundas. Havia suspense, contratempos e reviravoltas, porém os personagens e as tramas, longe dos estereótipos do gênero, emanavam autenticidade. Com o passar dos anos, fui lendo outros romances do autor. Esse cara já trabalhou no serviço secreto, pensava eu, a cada nova leitura, ou tem fontes muito boas.

Até o dia em que David John Moore, conhecido pelo pseudônimo John Le Carré, revelou que havia sido oficial de inteligência no MI6, nos anos quentes da guerra fria. Foi “aposentado” quando sua identidade foi exposta aos soviéticos pelo agente duplo Kim Philby (cujo caso inspirou O Espião que Sabia Demais). A partir daquele momento, dedicou-se exclusivamente à literatura. É curioso que, em 1963, quando John ainda era recrutador de agentes do outro lado da cortina de ferro, o serviço secreto britânico liberou a publicação de O Espião que Saiu do Frio por considerar o livro pura ficção, ao contrário da sensação da maioria dos seus leitores. O fato é que John inventou procedimentos, termos e rituais que mais tarde seriam adotados por seus colegas espiões. Quanto à autenticidade, usou seu conhecimento de insider para criar – por meio de detalhes muito bem articulados – cenários, atmosferas e personagens consistentes. O resto era ficção. Sobre isso John escreveu em seu livro de memórias: “Para um advogado, a verdade são os fatos sem adorno. Se esses fatos são verificáveis, essa é outra história. Para o escritor criativo, os fatos são o material bruto, não seu capataz, e sim seu instrumento, e seu trabalho é fazê-lo cantar. Se a verdadeira realidade reside em algum lugar, não é nos fatos, mas nas nuances”.

O clima e as nuances. Gary Oldman como George Smiley, personagem ícone de Le carré

A meu ver, mais do que Kim Philby, Le Carré foi um agente duplo, infiltrado na comunidade de inteligência a serviço da arte, com a missão de elevar o gênero de espionagem à boa literatura. E isso ele fez com louvor, por meio de tramas intricadas e personagens complexos, envolvidos em profundos conflitos, externos e principalmente internos. Ele foi Um Espião Perfeito, título de um de seus melhores romances, no qual o protagonista, Magnus Pym, tenta acertar os ponteiros com a sua consciência. Quando a Guerra Fria acabou e satélites, drones e computadores diminuíram a importância do agente em campo, Le Carré ampliou seus tópicos e aumentou a carga política em seus textos.

John faleceu aos 89 anos de idade e 57 de carreira literária, com um legado de 25 romances, além de contos, ensaios e a autobiografia O Túnel de Pombos. Cerca de um terço de seus romances foram adaptados para o cinema e para a televisão. Um deles, O Jardineiro Fiel, foi dirigido por Fernando Meirelles e fotografado por César Charlone. Profeticamente, seu último romance chama-se Um legado de Espiões (2017) e fecha o ciclo iniciado com O Espião que Saiu do Frio.

No prefácio de sua autobiografia O Túnel de Pombos, Le Carré explica o título do livro e, mais do que isso, a origem dos conflitos de seus personagens: “Não há quase nenhum livro meu que, em algum momento, não tenha sido chamado provisoriamente de O túnel de pombos. A origem desse título tem uma explicação simples. Quando eu era adolescente, meu pai decidiu me levar em uma das suas jogatinas em Monte Carlo. Perto do velho cassino, ficava o clube esportivo e, mais abaixo, o gramado e um campo de tiro de frente para o mar. Sob o gramado, estreitos túneis paralelos corriam até a água. Neles, eram colocados pombos que haviam nascido e sido apanhados em armadilhas no telhado do cassino. Sua tarefa era voar pelos túneis escuros e emergir no céu mediterrâneo, servindo de alvo para os cavalheiros esportistas que aguardavam, de pé ou deitados, com suas espingardas. Os pombos que não eram atingidos ou ficavam apenas feridos faziam o que essas aves sempre fazem: retornavam ao local de nascimento no telhado do cassino, onde as mesmas armadilhas esperavam por eles. A razão pela qual essa imagem me assombra há tanto tempo é algo que talvez o leitor seja capaz de julgar melhor do que eu”.

Reparação

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Romance de Ian McEwan (2001) + filme de Joe Wright (2007) Inglaterra.

“O problema… é este: como pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la… Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus.”

Ian McEwan é um dos escritores contemporâneos mais completos. Cria enredos de extraordinária engenhosidade, personagens profundamente humanos, transita entre o épico e o atual, entre o sinfônico e a música de câmera com a mesma desenvoltura. Tem uma prosa cativante e argumentos originais. Acima de tudo consegue, em uma mesma canetada, lançar o leitor em uma jornada cerebral e um forte drama emocional. Reparação, ao lado de Sábado (2005), encontra–se no topo de suas obras que expressam essas qualidades. Com o uso peculiar da metalinguagem, o livro trata de ficção, realidade e mentira; da perspectiva e das ilusões que ela provoca, da estreita ligação entre honestidade e bravura (e da falta delas); da imaginação, da vocação de criar e da solidão nela contida. O romance contém várias camadas de leitura e compreensão, desveladas através de uma estrutura meticulosamente engendrada. O autor, além de sensível investigador da alma humana, é também um engenheiro.

Por tudo isso, adaptar Reparação para o cinema é um enorme desafio. É verdade que há um grande caso de amor ancorando a trama (no Brasil, o filme se chama Desejo e Reparação), e uma grande guerra como cenário, mas Reparação é, na essência, um romance introspectivo, com muitos monólogos internos, pontos de vista que mudam de perspectiva e com boa parte dos conflitos acontecendo no território da consciência.  Joe Wright, o diretor, encara com ousadia o desafio. Logra construir uma estrutura cinematograficamente equivalente à estrutura do romance e desde o início estabelece uma gramática de curtas sequências que voltam rapidamente no tempo para lidar com as diferentes perspectivas. As soluções visuais para o texto refinado de McEwan não ficam devendo em criatividade. A direção de arte, além do trabalho meticuloso de reconstituição de época, tem papel importante na construção dos personagens. Nas cenas iniciais, a jovem Briony veste um vestido branco, diferente dos figurinos de todos que a cercam, e das texturas e estampas de vasos, cortinas, estofados da casa. Isso, de maneira sutil, a destaca, apresenta-a como uma menina que mesmo rodeada de gente, é solitária.

Reparação

Uma das grandes ousadias cinematográficas do diretor é a decupagem da sequência de Dunkirk. Ela inicia com Robbie, o protagonista, vagando com outros dois soldados ingleses no meio de um bosque cerrado. Passam por vários vestígios da guerra, mas parece que são os únicos seres vivos por ali. Até que Robbie sente o cheiro do mar, escala uma colina e a câmera que o segue ultrapassa-o para revelar a praia e o imenso caos das forças britânicas em retirada. Segue-se um plano-sequência de cinco minutos, magistralmente orquestrado, no qual a câmera ora acompanha Robbie, ora o abandona, ora torna-se uma câmera subjetiva, funcionando como seus olhos. Esse plano longo, sem cortes, invoca a natureza caótica, irracional de um conflito armado, mesmo sem mostrar uma única batalha. Ao final, o filme vence com louvor outro grande desafio: o de transpor o falso epílogo em primeira pessoa, do livro para a grande tela, com uma cena que fala sobre criação, honestidade e reparação. O filme fecha com um lindo discurso, verbal e imagético, sobre a natureza dos finais felizes.

Vale muito a pena conhecer as duas obras, o romance e sua adaptação cinematográfica.

 

 

Loving Vincent

Filme de animação – Direção de Dorota Kobiela e Hugh Welchman – Reino Unido/Polônia –  2017

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Loving Vincent é uma declaração de amor.  Amor ao artista Vincent Van Gogh e à arte da pintura. A frase Com amor, Vincent é extraída das inúmeras cartas ao irmão Theo. O filme abre com a citação de uma delas acompanhada da frase de assinatura. Tira a citação, some com a vírgula, criando o sentido duplo do título ( Loving, Vincent/Loving Vincent). No Brasil, o título é Com Amor, Van Gogh, em Portugal, A Paixão de Van Gogh.

Usando dois elementos documentais, as telas de Van Gogh e suas cartas, Loving Vincent cria uma narrativa detetivesca, na qual o emissário de uma das cartas do pintor tenta elucidar o mistério de sua morte. O roteiro é muito bem construído, ao jogar luz sobre o personagem e seus últimos dias de vida e ao lançar sombras sobre a versão oficial de sua morte, tida como suicídio, em uma estrutura que lembra Rashomon, de Akira Kurosawa. A trama, porém, é secundária. O grande destaque do filme é a estética, revolucionária e deslumbrante. Não é desenho animado, é pintura animada, pois as pinceladas frenéticas de Van Gogh ganham vida e movimento nos sessenta e cinco mil fotogramas, cada um deles pintado à mão por 125 pintores, sob a supervisão da diretora polonesa Dorota Kobiela, autora da ideia. Inicialmente, a artista plástica e cineasta pensou em um curta-metragem de 7 minutos sobre o pintor holandês, usando seus quadros como cenário. Comentou o argumento com Hugh Welchman, que se apaixonou por Kobiela e pelo projeto. Ao verem o resultado de alguns estudos e experiências com a técnica imaginada, concluíram que o projeto deveria ser maior, um longa-metragem com alcance internacional. A ideia inicial de Dorota, de pintar ela própria os fotogramas, foi abandonada, pois levaria, pelos seus cálculos, 81 anos para execução. As cenas foram filmadas com atores em fundo verde e depois, foram aplicadas aos fotogramas as pinceladas Van Goghianas.

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Van Gogh pintava o que via, paisagens e pessoas que estavam à sua volta, que faziam parte de sua vida. Por isso seus quadros se encaixam tão bem em um roteiro biográfico. Os personagens do filme, bem como as locações, foram todos objetos de suas telas. A obra, nesse sentido, é um passeio guiado em um museu, o museu da vida de Vincent.

 

Como a trama ocorre após a sua morte, o protagonista aparece apenas nas cenas de flashback,  todas em preto e branco, como se fossem estudos preliminares. O impacto estético não sofre com essa intervenção de memórias ausentes de cor, ao contrário, o preto e branco, mesclado às cenas coloridas com os tons vigorosos de Van Gogh, criam um espetáculo cinematográfico único.

Van Gogh começou a pintar com 28 anos e o fez por oito anos, até a sua morte. Conseguiu, em vida, vender apenas um quadro. Pintou em uma época em que as artes plásticas rompiam as amarras da obrigação/obsessão da verossimilhança, processo que iniciou com o advento da fotografia. Vincent fez parte do grupo de artistas que buscavam revolucionar a pintura, pesquisando técnicas e cores que expressassem um novo sentido para sua arte. Não imaginava que, quase cento e trinta anos depois da sua morte, suas cores e técnica seriam elementos na inovação de outra arte, a do cinema, que ainda estava para ser inventada. Inovação feita por uma artista polonesa e um diretor inglês movidos e inspirados pela paixão por Vincent e suas cores mágicas.

O filme está disponível na Netflix, mas, se possível, é melhor vê-lo em tela de cinema.

T2 Trainspotting

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Filme, Reino Unido 2017 Diretor Danny Boyle, Diretor de Fotografia Anthony Dod Mantle

Continuação, ou melhor, um post scriptum do excelente Trainspotting, de 1996, filme que alavancou a carreira do então jovem diretor Danny Boyle. O filme usa os mesmos atores, interpretando os mesmos personagens, narrando seu reencontro, após um hiato de duas décadas. O primeiro filme se baseia no romance homônimo de Irvine Welsh, o segundo se inspira no romance sequencia Porno, do mesmo autor. A trama, porém, é o elemento menos importante em T2 Trainspotting. Ao contrário do primeiro filme, a história do reencontro dos personagens junkies, eternos perdedores, mesmo com vinte anos a mais no lombo, tem pouco peso no espetáculo cinematográfico que cativa nossos sentidos. A linguagem audiovisual – composta dos planos (onde posicionar a câmera), da montagem (como articular os planos), da trilha (incidental e das músicas que se ouve no filme), da direção de arte e de fotografia – lidera essa viagem pelo terreno nostálgico e questionador que fala sobre amizade, sobre viver à margem, sobre oportunidade e traição.

Trainspotting

O início da obra apresenta, de maneira fragmentada, o status atual de cada um dos quatro ex-amigos e parece um vídeo clip. Enquadramentos angulados, câmera fora de nível, cortes rápidos, efeitos sonoros exagerados chegam a incomodar, pois causam a sensação de que o estilo tenta sobrepor-se ao filme. No desenrolar da obra, entende-se que o estilo é o filme, que as estéticas alternadas de vídeo clip e HQ, mescladas com o drama urbano cinzento, são orgânicas ao que a obra pretende passar. Efeitos visuais muito criativos nos colocam na pele dos protagonistas em diversas situações, desde a subida de 13 andares em um prédio com elevador eternamente fora de serviço até um trip de drogas, passando por lembranças das músicas e do futebol que faziam a cabeça desses guris, agora adultos.

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Além desses efeitos, constituídos muitas vezes de projeções atrás ou na frente ou pelos lados dos personagens, o filme parece seguir a máxima do lendário Fellini: Luz é tudo! E é por isso que o Diretor de Fotografia figura no subtítulo da resenha. Anthony Dod Mantle, que trabalhou em filmes importantes ligados ao Dogma, como Festa de Família, de Thomas Vintenberg e Dogville, de Lars Von Triers, mostra toda a sua habilidade e sensibilidade ao iluminar os diferentes sets de T2 Trainspotting. Em primeiro lugar, cria cenários diferenciados através do uso das cores – verdadeiras regiões de iluminação monocromática, aproveitando ambientes de pubs, discotecas ou mesmo as folhas de papel amarelas penduradas nas janelas do apartamento decadente de Spud.

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Esses ambientes brilhantes, roxos, azuis, amarelos contracenam com as ruas frias, cinzentas de Edimburgo (filmadas, na verdade, em Glasgow) e com o verde pujante da natureza montanhosa ao redor da cidade. Além das cores, o desenho de luz dos planos é magistral, acompanhando a jornada dos personagens pelos bares decadentes, as instituições financeiras com luz e ambientes clean, os hotéis soturnos e a noite da cidade marginal.

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O filme pode ser visto tranquilamente por quem não assistiu o primeiro. Ele resgata, através de flashbacks, situações que elucidam os personagens e as tramas necessárias para o acompanhamento do enredo que acontece vinte anos depois. No entanto, há uma infinidade de referências que certamente enriquecem a sessão para quem as entende, e mais ainda, para quem é fã do primeiro filme. Além das referências, há várias alusões aos fenômenos pop dos anos 1970 e 1980 que compõem o imaginário dos protagonistas, o seu caldo cultural.

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T2 Trainspotting já foi classificado como comédia, ou como comédia de humor negro mesclada com drama. Não o vejo como comédia, mas há uma presença forte de humor entre as várias desventuras dos personagens. Mais do que humor negro, eu diria humor auto-irônico, como na cena na qual Renton e Sickboy, após serem despojados de suas roupas, cobrem  sua nudez com dois aventais encontrados num curral, trajados como Kilts, fazendo referência irônica à vestimenta escocesa tradicional. As piadas verbais, as gags e cenas cômicas são também filmadas de maneira magistral, como se Boyle fosse inspirado em Blake Edwards ou Billy Wilder. Um exemplo dessa direção segura é a cena no banheiro, quando Renton e Begbie conversam, achando que estão falando com um estranho e de repente reconhecem (cada um em seu nicho) a voz do outro e a ficha cai. É uma cena, em seu timing e coreografia, digna das melhores comédias de desencontros.

T2 TRAINSPOTTING

T2 Traisnspotting é um filme diferente do Trainspotting original. Menos subversivo, menos radical e barra pesada nas situações dramáticas, porém mais ousado e criativo no manuseio das ferramentas de linguagem, portanto, mais poético ainda em sua narrativa. Não poderia ser diferente. Um aborda a juventude e o outro nos mostra como as coisas mudam completamente em apenas duas décadas e, apesar disso, permanecem iguais.

Trailer do filme –

Amostra dos livros nos quais os dois filmes se baseiam: