Fuga

Filme de Jonas Poher Rasmussen – Dinamarca – 2021.

Um dos ótimos filmes que pude assistir no Festival É Tudo Verdade foi o documentário em animação Fuga, premiado, entre outros, no Sundance Festival.  Documentário e animação são dois formatos que raramente se misturam; de um documentário se espera imagens reais e não desenhos animados, embora se aceite o uso de encenação e atores, em live action, para ilustração de um depoimento, reconstituição de um evento ou para narração.

Dois exemplos de documentários de animação de longa-metragem que revolucionaram conceitos são Valsa Com Bashir (2008) e A Onda Verde (2010). Fuga (ou Flee) junta-se a esses exemplos como um retrato documental da realidade que não poderia ser feito de outra forma a não ser pelo desenho animado. Neste caso o filme é ancorado numa pessoa que deseja permanecer incógnita e ganha, portanto, um avatar animado;  sua história cobre um longo período do passado e envolve situações como tráfico humano e contrabando de refugiados, em que são raros os registros de imagens; e, o mais importante, o filme se constitui numa espécie de catarse, de processo terapêutico para seu protagonista. Lembranças, traumas e sonhos compõem essa história e filmar o inconsciente é ainda mais complicado do que registrar a ação ilegal de contrabando de pessoas. No desafio de mergulhar nas profundezas da psique, Fuga tem muito a ver com Valsa com Bashir, dois soberbos escafandristas da alma.

Fuga, filme como processo terapêutico

Jonas Rasmussen, então adolescente, conheceu Amin Nawabi (pseudônimo) quando este ingressou na sua escola. Soube que era refugiado do Afeganistão e que chegou sozinho à Dinamarca. O pai desapareceu após ter sido preso em Cabul e sua mãe e irmãs foram assassinadas na sua frente. Jonas e Amin tornaram-se amigos, mas Amin nunca conseguiu falar sobre seu passado. Aos 36 anos, prestes a se casar, Nawabi decidiu contar sua verdadeira história para o amigo cineasta, com a condição de não aparecer no filme. No final surpreendente se entende o motivo do anonimato, motivo que vai além de um bloqueio emocional.

Fuga tem desenhos simples e animação em 2D, mas não se engane, a estética é impactante, tanto na recriação imagética das memórias que se mesclam com imagens de arquivo e filmes caseiros em super 8 e, principalmente, nos momentos dramáticos, quando a animação expressa de maneira sofisticada e visceral os sentimentos do refugiado.

A odisseia de Amin, narrada nesse processo terapêutico, quase detetivesco, lança luz diferente sobre o tema dos refugiados, um dos grandes problemas globais do início do século XXI. O depoimento pessoal, o ponto de vista íntimo, expõe a dimensão mais profunda do processo emocional de quem se vê, de repente, despido de seus direitos, de sua dignidade e, imerso em fragilidade, a mercê de burocratas, criminosos e autoridades abusivas. Telenovelas mexicanas, tesão pelo Van Damme, lembranças da infância e a força dos laços familiares são o contraponto à sucessão de tragédias e à intensidade dramática do calvário de Amin.

Fuga é uma coprodução internacional entre empresas e instituições da Dinamarca, França, Suécia, Noruega, EUA, Eslovênia, Estônia, Espanha e Itália. Os idiomas falados no filme são dinamarquês, inglês, dari e russo. O filme será lançado comercialmente em junho de 2021 na Dinamarca. Esperemos que chegue rapidamente ao Brasil e que possa ser visto, quando aportar por aqui, nas salas de cinema.

Atrás da Estante

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Filme de Rachel Mason – EUA – 2019.

Home movie foi um termo que se popularizou após o surgimento da 8 mm, uma bitola de filme que possibilitava às famílias de classe média terem a sua própria filmadora e arcar com custos de filme e revelação. O termo se referia inicialmente a filmes caseiros, com cenas do cotidiano, eventos e viagens, sem as qualidades técnicas e artísticas dos filmes profissionais. Normalmente, só despertavam interesse no círculo fechado de parentes e amigos, como um álbum de fotografias em movimento. Há alguns anos, o termo ganhou outro significado, é um subgênero do cinema documentário, filme realizado por um/a cineasta sobre seu entorno familiar, que une ao olhar do profissional o conhecimento íntimo e um acesso exclusivo do realizador ao sujeito do filme.

Esse é o caso de Atrás da Estante, ou Circus of Books, título original da obra da diretora Rachel Mason, que é música, performer e cineasta. Em Atrás da Estante, Rachel abandona a linha vanguardista e trabalha com as ferramentas mais usuais do documentário: depoimentos, registro direto e imagens de arquivo. O que há de especial no filme é a história insólita sobre um casal super convencional que se tornou dono de uma “livraria” pornô gay; e o fato de este casal, Karen e Barry, serem os pais da diretora.  O resultado é uma narrativa tocante, por vezes cômica, por vezes triste. Rachel e seus dois irmãos cresceram sem nada saber sobre a real  natureza do negócio familiar. Isso se manifesta de maneira hilária em várias cenas de Atrás da Estante, como quando Rachel revela, em conversa com um amigo, como tomou conhecimento do que realmente se vendia na livraria de seus pais. Outro momento hilário, importante também por expor a dinâmica familiar, é quando mãe e filha vasculham uma das caixas antigas na loja, repleta de fitas VHS de sexo explícito homossexual. “Essas fitas pagaram a tua faculdade” diz a mãe para uma Rachel perplexa.

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Karen e Barry Mason, donos da Circus of Books

A história da família Mason transpõe os limites do lar ao mesclar-se com a história da cena gay de Los Angeles, já que a Circus of Books, com suas duas filiais, tornou-se ponto de encontro, de referência e de peregrinação da comunidade homossexual. O preconceito, as restrições legais, a AIDS e suas tenebrosas consequências acabaram provocando um envolvimento do casal, levando-o a um ativismo e a uma relação com a comunidade gay que foi muito além da relação de negócios. O filme revela como Karen e Barry acabaram criando uma outra família, cujo lar era a Circus of Books, e por que tentaram manter suas duas famílias apartadas.

Karen, uma típica mãe judia, é a personagem mais interessante por seus conflitos e aparentes contradições. A sua interação com a filha/diretora, tentando interferir no próprio ato de filmar, expressa a sua forte personalidade. Barry, sempre sorridente, é seu ponto de equilíbrio. Os dois têm em comum uma visão de vida peculiar e um afeto inesgotável que é o esteio da dinâmica familiar. Temas como pornografia, identidade sexual, censura e liberdade de expressão permeiam o documentário, entrelaçados com o grande tema família. É com esse olhar múltiplo que Atrás da Estante extrapola o termo original de home movie e se torna, apesar da estrutura convencional, um filme cativante. O filme pode ser visto na plataforma de streaming Netlfix.