A Memória Infinita

Filme de Maite Alberdi, Chile, 2023

Eu pouco sabia sobre A Memória Infinita quando resolvi assistir ao filme. Sabia apenas que era um documentário chileno com uma abordagem diferenciada. Esse pouco conhecimento foi fundamental para que o filme me pagasse de surpresa, revelando-se camada por camada com seus encantos. Por isso sugiro que você interrompa aqui a leitura, veja o filme e depois volte ao post. Você pode vê-lo na Paramount Plus, via Amazon Prime ou Apple TV.

Maite Alberdi, que emplacou dois documentários chilenos à nomeação ao Oscar, achou que iria fazer um filme sobre o Alzheimer quando conheceu o casal Augusto Gongóra e Paulina Urrutia. Augusto já tinha a doença e Paulina o levava ao trabalho dela, os ensaios da peça de teatro em que era atriz. Maite achou isso interessante e os abordou com a proposta de acompanhar a rotina do casal no enfrentamento à doença. Paulina foi reticente, por todos os motivos compreensíveis. Quem a convenceu foi justamente Augusto, que não se importou em expor sua intimidade e fragilidade, talvez percebendo a relevância que a obra iria atingir.

A diretora não imaginava que o caso individual de Augusto iria levar seu filme por uma reflexão sobre a memória de uma nação inteira, e como o apagar dessa memória aniquila a identidade, seja de uma pessoa ou de um povo, deixando marcas profundas. Ela acabou descobrindo este caminho no decorrer das filmagens, ao conhecer melhor a história de Augusto, seu trabalho de repórter durante a ditadura de Pinochet.

Tampouco ela podia imaginar que uma pandemia se aproximava, o que iria impossibilitar o contato da equipe de filmagem com Augusto e Paulina. Como naquela altura já havia sido criada uma relação de confiança entre ela e o casal, a solução foi deixar um equipamento com Paulina, que documentou a rotina do casal isolado enquanto a doença progredia, resultando num material de proximidade e intimidade assombrosas. Paulina então, além de cuidadora e companheira tornou-se co-realizadora do filme, ao menos durante esse longo período de isolamento.

Com a pandemia, o isolamento imposto ao casal causou o agravamento da doença, com a sensação de abandono de Augusto por não poder ver mais seus amigos e filhos. Um sofrimento que Paulina teve que aguentar no peito, o que nem sempre ela conseguia. Todos esses elementos e o fato de os dois serem pessoas muito especiais resultam na exposição de uma história de amor que parece coisa de cinema, mas é a vida real, que conjuga momentos de desesperada agonia e profunda alegria.

Várias vezes no decorrer do filme me lembrei do francês Meu Pai. São obras muito diferentes que abordam o Alzheimer de forma sensível e poética, como eu antes nunca tinha visto. Uma delas é ficção, com roteiro e atores de primeira, o outro é um documentário com personagens sensacionais, que levou sua diretora por caminhos inesperados, como muitas vezes acontece em um documentário. O importante nesses casos é saber se deixar levar pelo material, abandonando, às vezes, ideias pré-concebidas.

Cabe destacar o trabalho da montadora, Carolina Siraqyan, que criou essa estrutura intricada de revelação por camadas, articulando de forma magistral a narrativa entre filmes de arquivo e o material original, a história pregressa e o momento atual. Essa edição primorosa, ao lado dos incríveis personagens é o que torna o filme genial.

Augusto faleceu em 2023, aos 70 anos, quatro meses após a estreia de A Memória Infinita.

O filme foi premiado com o Goya de melhor filme Ibero Americano, O Prêmio de Júri do festival de Sundance, Prêmio Platino de Melhor Documentário Latino Americano e ficou entre os cinco finalistas do Oscar para Melhor Documentário.

Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você

Filme, direção de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, Brasil 2023

Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você, documentário que fui ver com uma expectativa enorme, pelos seguintes motivos:

A canção Águas de Março, na versão de Elis e Tom é extraída desse disco, e o “clip” que virou um clássico-cult,  é um plano sequencia do material que foi filmado na gravação do disco, base para o filme atual. Não apenas a música é absolutamente maravilhosa, como a filmagem do dueto é sensacional e te deixa curioso para ver o antes e depois daquele momento único em que músicos, cantores e câmera atingem em sincronia a perfeição.  

Um dos diretores do filme é o Jomico, o Jom Tob Azulay (nome que é corruptela de Iom Tov que significa, em hebraico, bom dia), diretor do esplendoroso Doces Bárbaros (1976), documentário musical no estilo cinema direto que me marcou profundamente quando o assisti com estudante de cinema. Jomico era estudante de cinema na UCLA quando Elis e Tom foi gravado e ele constituiu virtualmente 50% da equipe de filmagem, captando o som direto. A outra metade era Fernando Duarte, o diretor de fotografia que operou a câmera 16mm e que seria o DF também em Doces Bárbaros.

O filme A Música Segundo Tom Jobim de Nelson Pereira dos Santos que para mim é um dos grandes filmes brasileiros de todos os tempos.

Além dessas três referências, havia ali o encontro de dois gigantes da música que eu admiro muito. Em outras palavras, eu esperava sair do cinema absolutamente embevecido. Acontece que essa expectativa alta, acaba sendo uma armadilha. Há elementos no documentário, há momentos no filme que valem muito a pena ter ido assistir, mas esses elementos não se juntam numa obra completa. Ou seja, o impacto positivo é devido a esses momentos e, portanto, um impacto fragmentado.

Elis e Tom – Dueto de titãs

Acredito que um dos problemas do filme é a falta de um conceito central, de um olhar autoral.  Ele nasceu inicialmente como um registro, ideia de Roberto Oliveira, empresário de Elis que articulou junto com a gravadora esse disco de encontro de Elis com o Tom. O material filmado foi editado para uma promo que passou na TV bandeirantes na época do lançamento do disco e dos dois shows que aconteceram no Rio e em São Paulo em 1974. Também foi usado sendo inserido em outros trabalhos e o seu extrato mais visto é o sensacional clip de Águas de Março. Mas grande parte do filme ficou na lata, por quase meio século, até que Roberto decidiu que era hora de fazer o filme sobre esse encontro, com toda a perspectiva histórica.

Ao material original foram acrescidos outros materiais de arquivo das carreiras dos dois e um grande número de depoimentos. Os depoimentos testemunhais (dos músicos que tocaram, do empresário da gravadora na época) são ótimos, os depoimentos de análise e contexto parecem explicativos demais e os vários depoimentos que dizem o quanto cada um deles era genial são completamente desnecessários. Esse acumulo de elementos de entorno acaba esmaecendo a qualidade das filmagens do nascimento do disco nesse dueto de titãs. E frustrando o interesse do espectador.

E ainda assim, não dá para deixar de ver o filme. Os momentos (raros de se ver em outros filmes musicais) de composição dos arranjos, dos ensaios, das tensões criativas e soluções mostram uma Elis movida à música, literalmente, e uma dinâmica entre ela, Tom e Cesar Camargo Mariano que é pura  manifestação da magia que a arte contém, e que nem os próprios artistas sabem explicar. Mas magia a gente não explica. Apenas tira da cartola.

O Mistério de Maya

Filme de Henry Roosevelt, EUA – 2023

O ser humano é o animal que mais tempo leva para tornar-se independente após seu nascimento. Em função disso se criou a família. A família é a unidade social que abriga os primeiros passos do indivíduo, onde ele deve ficar protegido até poder se defender sozinho.

Algumas famílias, no entanto, não cumprem adequadamente essa função, outras ainda a subvertem, tornando o núcleo familiar um espaço de abuso, exploração e violência. Com o avanço da civilização, o estado tomou para si a função de proteger os menores que vivem em famílias disfuncionais. Mas o que acontece quando este serviço de proteção se torna, ele próprio, disfuncional?

O Mistério de Maya, cujo título original é Take Care of Maya (título bem mais apropriado do que sua versão brasileira), começa esquisito. Há uma colagem de fragmentos de depoimentos que é praticamente um “teaser” no início do filme. Parece mais um reality show tipo true crime, daqueles que juntam depoimentos sintéticos e bombásticos com reconstituições superficiais. No entanto, após esse deslize inicial o documentário começa a revelar uma história inacreditável e a forma de expor essa história, camada por camada, nos conduz passo a passo pela imensa tragédia que se desenrola na tela.

Apesar de não haver nada de inovador no filme em termos de linguagem, a maneira como sua narrativa é estruturada potencializa o imenso impacto que os fatos revelados tem sobre o espectador. O capítulo final reserva ainda mais uma surpresa, quando o caso individual migra para o coletivo. Outra grande qualidade do filme é a articulação de vários materiais como vídeos caseiros da família, vídeos dos médicos e do inquérito judicial com as imagens e depoimentos feitos pelo filme, criando a sensação de uma simultaneidade de olhares e ângulos sobre o caso.

O Mistério de Maya é daquelas obras que mexem forte com o emocional, mas abrem também um enorme espaço para reflexão após o término do filme, e desperta curiosidade para saber como estão hoje os personagens. Você pode assistir o filme na Netflix.

Lançamento de Monumental!

Ontem Monumental! O Restauro de Um Símbolo, encontrou o olhar do público pela primeira vez.  E foi lindo. Deu para sentir que o filme funciona e consegue cativar. A maioria dos comentários foi no sentido de surpresa, pela obra entregar e abranger muito mais do que as pessoas esperavam de um documentário sobre uma escultura e o seu processo de restauração. Outra surpresa manifestada foi em relação à forma escolhida para a narrativa da obra e como todos os temas, os fatos e processos históricos se concatenam e se comunicam através dessa estrutura narrativa. Carlos Cortes, filho do lendário Paixão Côrtes disse que o filme conta a História, contando uma história. Verônica Di Benedetti, responsável técnica pelo restauro na equipe do Sinduscon-RS, falou em poesia que deu vida ao bronze. Várias pessoas elogiaram o texto e como este se relaciona com os distintos depoimentos.

Cabe aqui um agradecimento e reconhecimento à equipe que trabalhou duro para chegar a esse resultado. A equipe de campo, com Alan Mendonça e Marcelo Curia nas câmeras e drone, Roberto Coutinho, Nina Mayers e Guilherme Cássio no som direto e Carlo Carlota na assistência de direção e produção. A equipe de pós, principalmente o editor Raoni Ceccim que foi um parceiro incansável, criativo e crítico na construção dessa narrativa (eu sempre digo que o roteiro de um documentário é escrito até o último corte), o desenho de som e a mixagem de Augusto Stern e Fernando Efron e a trilha musical do Chico Pereira. Duas consultorias muito importantes, a do Renato Dalto no texto e da Alice Trusz na pesquisa de material de acervo. O pessoal de pós de imagem, o André Wofchuck na cor e o Pedro Marques na supervisão e efeitos, que operou milagres tecnológicos com as fotos e filmes de acervo de distintas fontes, em vários formatos e resoluções. Vale ressaltar o maravilhoso trabalho do ator, Carlos Cunha que deu vida ao texto. E coordenando toda essa galera, em todas as fases, da pré até os lançamentos, a Cintia Helena Rodrigues na produção executiva. Vale mencionar também o apoio primoroso de Vitor Ortiz e Denise Viana Pereira que coordenaram a administração do projeto junto ao Pro-Cultura. E agradecer ao Zalmir Chwartzmann que me convidou para criar  Monumental! O Restauro de Um Símbolo.

A exibição na Capitólio foi a primeira perna de três eventos de lançamento do filme, a segunda acontece na semana que vem na Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana. Uma sessão com debate, com a participação do historiador de arte José Francisco Alves, a equipe do Sinduscon-RS e do filme, com mediação da jornalista e curadora Mônica Kanitz. A sessão será às 19 horas, com entrada franca. Ali vai ser possível sentir o público ainda mais.

Monumental! O Restauro de um Símbolo é uma realização do Sinduscon-RS e Associação Sul Riograndense da Construção Civil, produção da Spectra Filmes. Tem o patrocínio da GERDAU e financiamento da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul pelo Pro-Cultura.

Abaixo o teaser do filme

Monumental! O Restauro de um Símbolo

Na próxima semana mais um filme meu virá ao mundo, lançado em duas salas icônicas de Porto Alegre – as Cinematecas Capitólio e Paulo Amorim. E o filme é justamente sobre um dos monumentos mais icônicos da capital, O Laçador, de Antonio Caringi.

Em 2019 fui “convocado” por Zalmir Chwartzmann, do Sinduscon-RS, para pensar um projeto de filme sobre o Laçador, por ocasião da restauração da escultura. Um dos temas que me fascinam é a questão de identidade – como num país multiétnico como o Brasil as distintas culturas se relacionam, convivem, integram-se e como as identidades se forjam nesse caldo cultural. Um símbolo como O Laçador tem muito a ver com esse tema.

Fiz uma pesquisa inicial e um pré roteiro para inscrevermos na LIC, a Lei de Incentivo à Cultura do RS. E então veio a pandemia. Os projetos (do restauro e do filme) foram retomados no segundo semestre de 2021.  A ideia era fazer um documentário de média metragem. Durante as filmagens e principalmente na edição, percebi que tinha um longa em mãos. Essa é uma qualidade cativante do documentário, você entra numa aventura que sabe onde começa, mas não sabe quais caminhos vai tomar. E o Laçador me levou do pampa sul rio-grandense para as ruas tumultuadas da República de Weimar que desembocou na Alemanha Nazista e na Segunda Guerra Mundial, me levou para o Parque Ibirapuera e pelos dois governos de Getúlio, o ditatorial e o democrático – períodos repletos de entreveros, me levou pelo positivismo e seus monumentos, pelo espaços urbanos de Caxias, Pelotas e Porto Alegre, pela paixão de Paixão Côrtes pelo Rio Grande campeiro, e pela paixão de Antonio Caringi pela arte de esculpir.

A equipe mirando o espaço urbano. Foto de Marcelo Curia.

As encruzilhadas que ligam todos esses caminhos ao Laçador compõem um mosaico. Mosaico feito de imagens atuais, riquíssimo material de acervo depoimentos de familiares de Caringi, de acadêmicos das Artes, da História e da Antropologia, de pessoas que trabalharam diretamente na restauração. E de um trabalho sensacional do ator Carlos Cunha.

Monumental! O Restauro de um Símbolo é uma realização do Sinduscon-RS, produção da Spectra Filmes. Tem o patrocínio da Gerdau e financiamento da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul pelo Pró-Cultura. As sessões de lançamento acontecem no dia 24/05 às 19 horas na Cinemateca Capitólio e no dia 31/05 às 19 horas, sessão com debate após o filme, na Cinemateca Paulo Amorim, da Casa de Cultura Mário Quintana. Não perca!

Harmonia e o Carnaval.

Filme – Roteiro, foto e direção de Jaime Lerner, Brasil , 2000.

Harmonia é o nome de um parque no centro de Porto Alegre. Parque que gerou um conflito entre os dois movimentos culturais mais populares de Porto Alegre, o tradicionalismo gaúcho e o carnaval. Os tradicionalistas se opunham a um projeto da prefeitura de construir no local uma pista de eventos que servisse para o desfile de carnaval em fevereiro e para o desfile em comemoração da revolução farroupilha em setembro. Até então o desfile das escolas de samba de Porto Alegre se dava numa rua lindeira ao parque que era fechada para o trânsito nas semanas que antecediam o carnaval. Curioso para entender o que havia por trás desse conflito, se havia realmente um antagonismo entre os dois movimentos, fiz um documentário sobre o assunto. A obra acabou virando um profundo mergulho na história, alma e identidade do Rio Grande do Sul. Era para ser um filme de 50 minutos, mas na edição vimos que tínhamos um longa. Harmonia foi rodado (na bitola de 16mm) em 1996 e lançado no ano 2000, após termos conseguido a grana para a finalização. Descobrimos que era o primeiro documentário gaúcho de longa-metragem.

Todo projeto que a gente faz, acaba nos enriquecendo como pessoas. Mas Harmonia mudou e mexeu com muitas coisas dentro de mim. Além da satisfação pela repercussão do filme em 2000, ele ampliou e aprofundou minha visão sobre o racismo no Brasil e me fez entender o que o carnaval significa, em sua essência, para os brasileiros descendentes de africanos.

No próximo domingo, dia 12/03, às 18 horas, o filme será exibido em sessão especial na Cinemateca Capitólio, encerrando uma mostra de filmes sobre carnaval. Eu não vejo o filme faz no mínimo 15 anos (estamos tentando, o produtor Cícero Aragon e eu, a atualização da matriz para formato digital) e estou ansioso para reassistir e ver como ele funciona para o público depois de tantos anos. Após o filme haverá debate mediado pela historiadora Laura Galli.

Estão todos convidados.

RESTAURAÇÃO

Iniciaram-se as filmagens da segunda fase do meu novo documentário. Encarando o frio intenso em Pelotas (dois dias gloriosos de magnífica luz, após chuva intensa), lá estava a nossa banda: Alan na Câmera 1 e Drone, Marcelo na câmera 2 e Gimbal, Nina no som, Rapha Pilotando a van e Cartlota na produção e AD. Por controle remoto,  Cintia Helena na produção executiva.

Isabel Torino no MALG

Mais detalhes serão informados no decorrer da gestação. Posso adiantar que em Pelotas fomos dar um mergulho no universo do escultor Antonio Caringi que além de uma vasta obra, teve uma vida muito interessante. Um super agradecimento à família (seus filhos e os netos Antonella e Amadeu), às artistas e acadêmicas Isabel Torino, Neiva Bohns e Myriam Anselmo, que também foi sua aluna, e ao MALG e à SECULT.

O filme foi gestado pelo projeto Construção Cultural do SINDUSCON-RS e tem o patrocínio da Gerdau, através da LIC-RS. As fotos (de cima para baixo) são de Alan Mendonça, Carlota Araujo, Nina Mayer.

O Sentinela Farroupilha de Antonio Caringi.

A Última Floresta

Filme de Luiz Bolognesi e Davi Kopenawa – Brasil – 2021

A Última Floresta é um filme deslumbre. Ele nos leva a um universo exuberante de cores, lendas e conhecimentos, o universo dos Yanomami e de sua floresta, lá onde o Brasil acaba e começa a Venezuela. É fruto da colaboração entre o cineasta branco Luiz Bolognesi que dirige o filme e o xamã Yanomami Davi Kopenawa que co-escreveu e protagoniza boa parte das cenas. A ideia de Davi era criar uma obra que fosse além do filme denuncia, transmitisse aos brancos a realidade e a visão de mundo Yanomami, fosse um filme conexão. E que essa conexão recusasse a imagem de coitadismo dos indígenas – ao contrário, mostrasse a beleza e a força de seu modo de vida. Isso não significa que a ameaça do garimpo seja ignorada ou menosprezada, ela permeia o filme e se apresenta como um dos grandes desafios atuais dos povos originários, inserida, infelizmente, na realidade mágica que nos deslumbra.

Davi convidou Luiz para que passasse duas semanas em sua aldeia, Watoriki, no meio da selva. Essa foi a primeira imersão no universo de A Última Floresta, ali começou a ser gestado o roteiro que se completou durante as cinco semanas de filmagens. A equipe de campo foi composta por seis pessoas: o diretor, o diretor de fotografia, um assistente de câmera, um logger e operador de drone, um técnico de som e uma assistente de direção e diretora de produção.

Sonhos, mitologia e realidade em A Última Floresta

Para captar e transmitir na tela o encanto do local, foram feitas duas opções importantes: mesclar a realidade com o onírico e o mitológico, já que os Yanomami não fazem essa separação; investir na fotografia realçando a exuberância das cores, as texturas das peles e plantas, os rostos e a luz natural. Para isso se trabalhou com uma janela cinemascope (2.35:1), uma grande profundidade de foco nas cenas da selva e com lentes rápidas e câmeras de alta sensibilidade para cenas noturnas e/ou internas, com a luz da lua ou de fogueiras como fontes principais. Há um artigo sensacional do diretor de fotografia, Pedro J. Marquez sobre o trabalho no filme que você pode ler clicando aqui.

Essa mescla entre sonho, lenda e realidade, narradas, encenadas e vividas pelos Yanomami, cria, além de um vislumbre mágico de seu universo, uma linguagem singular que integra documentário direto com uma espécie de docudrama sofisticado. Tudo isso resulta num filme muito especial, espelho do modo de vida que ele retrata. Filme imperdível, que aborda temas pesados, cruciais com imensa originalidade.

Davi Kopenawa e seus guerreiros a caminho de um encontro com garimpeiros.

A Última Floresta foi premiado em vários festivais internacionais antes de ser lançado nos cinemas e ser licenciado para exibição na Netflix. Só lamento não tê-lo visto na grande tela das salas de cinema.

Os Últimos Dias

Filme de James Moll – EUA – 1998.

Em 1994, um ano após finalizar A Lista de Schindler, o cineasta Steven Spielberg criou a Fundação Shoah (Survivors of the Shoah Visual History Foundation), que tinha como objetivo gravar depoimentos de testemunhas e, principalmente, de sobreviventes do holocausto. Nessa época, meio século após o fim da Segunda Guerra Mundial, já despontava um movimento de negação da grande barbárie perpetrada pelos nazistas. Esse movimento provavelmente ganharia mais força, quando não houvesse mais pessoas vivas que sofreram, perpetraram ou testemunharam a perseguição e extermínio de judeus na Europa.

Em 1998, a Fundação Shoah produziu o documentário Os Últimos Dias, que acompanha cinco judeus de origem húngara sobreviventes do holocausto.  Renée Firestone, Irene Zisblatt, Tom Lantos, Bill Basch e Alice Lok Cahana contam suas histórias e revisitam os campos de concentração para onde foram deportados e os locais onde moravam antes da deportação. Após a guerra, todos eles emigraram para os Estados Unidos. Há também depoimentos de Dario Gabbai, um dos poucos sonderkommando sobreviventes (judeus que operavam as câmeras de gás e levavam os corpos aos crematórios); de um médico nazista que fazia experimentos em humanos; do historiador (e sobrevivente) Randolph Braham; do soldado negro norte-americano, Paul Parks, que participou da liberação de Dachau, entre outros.  O filme, vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 1999, foi remasterizado recentemente e licenciado pela Netflix.

A deportação para o extermínio dos judeus húngaros ocorreu em 1944, quando já se delineava a derrota nazista. A Hungria, que lutava desde 1941 ao lado dos países do Eixo, começou a negociar secretamente um armistício com a Inglaterra e a União Soviética. Hitler, ao saber disso, ocupou o país, derrubou o governo e colocou um fascista no poder. A comunidade judaica, poupada até então dos guetos e campos de extermínio, teve o mesmo destino dos judeus dos países ocupados pela Alemanha. É incrível como, mesmo na iminência de uma derrota, os nazistas se concentraram em acelerar a solução final, tirando recursos do esforço de guerra para reunir, deportar e aniquilar judeus. O engenheiro da solução final, Adolf Eichmann, foi à Hungria supervisionar pessoalmente essa operação. Entre 15 de maio e 9 de julho, mais de 400 mil judeus foram levados em 147 trens para os campos de extermínio. A grande maioria foi conduzida diretamente dos vagões para as câmaras de gás.

Os Últimos Dias – superação e homenagem.

Além de retratar o fim trágico da comunidade judaica na Hungria, através das epopeias individuais de seus protagonistas, o filme apresenta cinco admiráveis histórias de superação. Muito jovens no período da Guerra, os cinco sobreviventes foram vítimas de uma máquina construída para triturar sua humanidade e depois os exterminar. Viveram as piores atrocidades, foram despojados de qualquer direito, perderam pais, mães, irmãs e conheceram o lado monstro do ser humano. No entanto, reconstruíram suas vidas, e embora não tenham saído ilesos, não foram contaminados pelo ódio. Ressuscitaram como resposta aos que não conseguiram lhes tirar a dignidade e como homenagem aos que não sobreviveram. Esse para mim é o ponto alto do filme, a história mais incrível.

Os Últimos Dias faz conexão entre o holocausto e todas as atrocidades produzidas com o combustível do racismo e da xenofobia, como a escravização de africanos. O ódio patológico a um grupo ou indivíduo em função de cor, etnia ou credo parece ter atingido o ápice do horror no regime nazista. Mas segue sendo um combustível poderoso e altamente inflamável no mundo atual. Por isso, a Fundação passou a gravar testemunhos de outros massacres (contemporâneos) e de ações antissemitas na Europa. Associou-se à Universidade do Sul da Califórnia e deslocou sua sede para o campus.

Em entrevista, Spielberg conta que sua avó ensinava inglês para os húngaros sobreviventes do holocausto em Cincinnati: “Eu devia ter uns dois, três anos, e me sentava à mesa com eles. Foi aí que conheci os números – graças àqueles que todos que passaram por Auschwitz têm no antebraço. Essa foi minha versão de Vila Sésamo. Foi assim que aprendi a contar.”

Fuga

Filme de Jonas Poher Rasmussen – Dinamarca – 2021.

Um dos ótimos filmes que pude assistir no Festival É Tudo Verdade foi o documentário em animação Fuga, premiado, entre outros, no Sundance Festival.  Documentário e animação são dois formatos que raramente se misturam; de um documentário se espera imagens reais e não desenhos animados, embora se aceite o uso de encenação e atores, em live action, para ilustração de um depoimento, reconstituição de um evento ou para narração.

Dois exemplos de documentários de animação de longa-metragem que revolucionaram conceitos são Valsa Com Bashir (2008) e A Onda Verde (2010). Fuga (ou Flee) junta-se a esses exemplos como um retrato documental da realidade que não poderia ser feito de outra forma a não ser pelo desenho animado. Neste caso o filme é ancorado numa pessoa que deseja permanecer incógnita e ganha, portanto, um avatar animado;  sua história cobre um longo período do passado e envolve situações como tráfico humano e contrabando de refugiados, em que são raros os registros de imagens; e, o mais importante, o filme se constitui numa espécie de catarse, de processo terapêutico para seu protagonista. Lembranças, traumas e sonhos compõem essa história e filmar o inconsciente é ainda mais complicado do que registrar a ação ilegal de contrabando de pessoas. No desafio de mergulhar nas profundezas da psique, Fuga tem muito a ver com Valsa com Bashir, dois soberbos escafandristas da alma.

Fuga, filme como processo terapêutico

Jonas Rasmussen, então adolescente, conheceu Amin Nawabi (pseudônimo) quando este ingressou na sua escola. Soube que era refugiado do Afeganistão e que chegou sozinho à Dinamarca. O pai desapareceu após ter sido preso em Cabul e sua mãe e irmãs foram assassinadas na sua frente. Jonas e Amin tornaram-se amigos, mas Amin nunca conseguiu falar sobre seu passado. Aos 36 anos, prestes a se casar, Nawabi decidiu contar sua verdadeira história para o amigo cineasta, com a condição de não aparecer no filme. No final surpreendente se entende o motivo do anonimato, motivo que vai além de um bloqueio emocional.

Fuga tem desenhos simples e animação em 2D, mas não se engane, a estética é impactante, tanto na recriação imagética das memórias que se mesclam com imagens de arquivo e filmes caseiros em super 8 e, principalmente, nos momentos dramáticos, quando a animação expressa de maneira sofisticada e visceral os sentimentos do refugiado.

A odisseia de Amin, narrada nesse processo terapêutico, quase detetivesco, lança luz diferente sobre o tema dos refugiados, um dos grandes problemas globais do início do século XXI. O depoimento pessoal, o ponto de vista íntimo, expõe a dimensão mais profunda do processo emocional de quem se vê, de repente, despido de seus direitos, de sua dignidade e, imerso em fragilidade, a mercê de burocratas, criminosos e autoridades abusivas. Telenovelas mexicanas, tesão pelo Van Damme, lembranças da infância e a força dos laços familiares são o contraponto à sucessão de tragédias e à intensidade dramática do calvário de Amin.

Fuga é uma coprodução internacional entre empresas e instituições da Dinamarca, França, Suécia, Noruega, EUA, Eslovênia, Estônia, Espanha e Itália. Os idiomas falados no filme são dinamarquês, inglês, dari e russo. O filme será lançado comercialmente em junho de 2021 na Dinamarca. Esperemos que chegue rapidamente ao Brasil e que possa ser visto, quando aportar por aqui, nas salas de cinema.