Pátria

Livro – Fernando Aramburu – Espanha – 2016.

Pátria é um crime perfeito. Sua narrativa é tão envolvente que chega a encobrir a sofisticação do texto e a genialidade de sua estrutura, como um crime perfeito encobre os rastros do autor. Em outras palavras, o leitor se esquece que está lendo e é absorvido pela trama e pelas vidas de Miren, Bittori, Nerea, Txato, Joxe Mari, Arantxa, Joxian, Gorka e Xabier. Como um crime perfeito, o livro evidencia o drama das vítimas e nos desafia com seus mistérios.

Normalmente, os romances de vulto dão maior importância aos personagens, usando a história como elemento para testá-los e expô-los, enredando-os em problemas e conflitos. Em Pátria, os protagonistas também parecem ter maior importância do que o enredo, porém mais do que um romance de personagens a obra é um tratado sobre as relações, ou sobre os mecanismos ocultos que criam (e destroem) vínculos entre amigos, vizinhos, amantes, cidadãos, pais, filhos, companheiros, cúmplices.  Pátria coloca esses laços à prova no contexto da luta armada do ETA, num vilarejo do País Basco em um período de três décadas. Seu evento central é o assassinato de um dos protagonistas e suas consequências na vida das famílias da vítima e a do algoz.

Fernando recheia seu texto em espanhol com termos em euskera (o idioma basco, proibido na Espanha durante a ditadura franquista). O euskera, de raiz desconhecida, é muito diferente de todos os outros idiomas europeus e sua sonoridade traz um tempero especial ao texto e confere autenticidade aos diálogos e personagens. O autor utiliza ainda, na condução da história, um narrador onisciente em terceira pessoa. Esse narrador observador transforma-se, de repente, e apenas por instantes, em cada um dos nove personagens, através de breves expressões em primeira pessoa. O recurso soaria estranhamente esquizofrênico se não fosse articulado de forma genial. Outro elemento sofisticado é a aplicação meticulosa de dosagens  de humor, por um lado, e de melodrama, por outro, na tragédia que envolve as duas famílias.

Aramburu estrutura seu romance como uma obra de Gaudí: arquitetura arrojada e construção sólida. A impressão é que não há regra ou planejamento por trás da quebra da cronologia do texto, nem da determinação dos capítulos e sequências em que cada personagem assume e reassume o protagonismo. Impressão enganosa. Esse vai e vem no tempo e entre os personagens é uma aula de como envolver o leitor e enriquecer o painel de relações, aspirações e conflitos através da estrutura. O romance oferecido em fragmentos, num encadeamento que preserva a fluidez, acaba nos tornando cúmplices do crime perfeito.

O assassinato de Txato – um crime ou ação terrorista,  para alguns, e um ato patriótico para outros – suscita questões sobre nacionalismo, independência e fanatismo. E reflete sobre como a luta por uma causa justa pode se desvirtuar, quando a causa é colocada acima de tudo e de todos.

A narrativa envolvente de Pátria, a sofisticação da escrita e os temas que aborda resultaram num casamento perfeito entre sucesso comercial e reconhecimento literário. O livro virou série da HBO, a primeira série original espanhola da emissora. O autor se emocionou ao assistir a adaptação televisiva, e revelou que não consegue mais pensar em seus personagens sem enxergar os atores que dão cara e voz às suas criaturas.

Coringa, Watchmen e a síndrome da necessidade de Heróis

heróis 4

A humanidade precisa de heróis, ou talvez seja mais correto dizer que os seres humanos  precisam deles. Desde os primórdios da civilização, passando por todas as mitologias conhecidas, heróis são criados e convocados a salvar, resgatar, proteger, combater as ameaças que assolam as suas comunidades. Desde a década de 1930,  as revistas em quadrinhos tornaram-se o habitat por excelência dos heróis. Coincidência ou não, foi a década da ascensão do nazismo na Europa e da grande depressão nos EUA. As revistas em quadrinhos eram divertimento barato e supriam o anseio de encontrar um salvador da pátria entre os heróis que povoavam suas páginas. Curiosamente, esses heróis não lutavam contra a miséria ou contra o grande vilão que ameaçava conquistar o mundo. Eles combatiam, em sua maioria, o crime. E faziam isso usando máscaras ou um disfarce para preservar a identidade verdadeira, exatamente como os bandidos. As histórias  eram bastante simplistas e os ídolos que as protagonizavam eram personagens pouco complexos, assim como seus antagonistas, os vilões. A ação era mais importante do que as tramas e portanto os desenhos – o grafismo das perseguições e pancadaria – tornaram os quadrinhos um terreno fértil de proliferação de heróis.

As mulheres eram exceção nesse universo, mas estavam presentes desde os primeiros anos. Os primeiros heróis negros começam a surgir apenas no final da década de 1960 e sem fazer muito alarde.  Com o advento da televisão, os heróis migraram também para a telinha. Os dois mais populares, Batman e Super Homem, ganharam seus seriados televisivos. O seriado de Batman foi bastante inovador ao usar ângulos da câmera fora de eixo e apresentar os ruídos das lutas ( Baaam, Pooow, etc) de forma gráfica como nos quadrinhos. A TV aumentou ainda mais a popularidade dos heróis e incrementou a venda das revistas. O cinema entrou com força nesse filão através das franquias. Os filmes, principalmente os da franquia de Batman, buscaram construir um herói mais humano, com falhas e conflitos internos. Os enredos e cenários tornaram-se mais sombrios, seguindo a evolução dos tempos e das histórias de quadrinho que surgiram após Watchmen. Os heróis deixaram de ser moralmente perfeitos, os vilões começaram a revelar seu charme, equilibrando um pouco a balança. Até que um deles, o arquivilão Coringa (Joker) ganhou seu próprio filme, sem a presença de Batman. O filme, dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix, quebra os paradigmas maniqueístas dos heróis de HQ.  Além de colocar o bandido como protagonista, ele o apresenta como vítima – sua maldade não é intrínseca, é a sociedade que o transforma em vilão. A intenção é boa, mas a  obra, ao tentar quebrar esses paradigmas, abandona o universo HQ e migra para outro gênero: o drama psicológico policial. A não ser pelo personagem e cenário (Gotham City), Coringa se relaciona mais com Hannibal Lecter do que com Batman. Seu sucesso de bilheteria aponta para o surgimento da franquia dos vilões e provoca dúvida se mudamos para uma sociedade cujos heróis são os vilões.

heróis 2
Joaquin Phoenix encarna o Joker, o Coringa.

A obra mais interessante em relação ao questionamento do culto aos heróis é justamente uma HQ, ou novela gráfica, termo cunhado especificamente em virtude da complexidade da trama e profundidade dos personagens de Watchmen de Alan Moore (texto), Dave Gibbons (arte) e John Higgins (cor). Watchmen cita como mote a pergunta do poeta romano Juvenal (50 d.c), em Sátiras: quem vigia os vigias? E responde: ninguém.  Mostra o que acontece com um grupo seleto, mesmo que parcialmente bem intencionado, quando este não presta contas à ninguém.  A saga criada em torno dos seis heróis, alcunhada por muitos de Ulysses dos quadrinhos, trata da cultura individualista que permeia o universo de vigilantes (heróis e super heróis) que combatem o crime por iniciativa própria e por meios muito particulares. Há um forte questionamento, não apenas da figura do justiceiro na sociedade atual, mas também da nossa necessidade de heróis e como essa idealização pode ser perigosa. Esse mesmo questionamento aparece na Bíblia, de maneira diferente, quando o profeta Samuel, o último dos Juízes, encara a exigência do povo de Israel de ter um rei, como todas as nações, um herói que os lidere nas guerras. Samuel os adverte que o Rei acabará tomando seus filhos e filhas, confiscará parte de suas colheitas e rebanhos e os fará escravos. De nada adianta a advertência. Saul é ungido como o primeiro rei e depois dele Davi, o herói que derrotou o gigante Golias, é alçado ao trono. A profecia de Samuel se concretizará da forma mais terrível sob o reinado de Herodes.

heróis 1
Watchmen revolucionou a narrativa, no texto e na arte.

Voltando da história para a ficção, Watchmen, a novela gráfica, homenageia o gênero de heróis com uma imensa criatividade e, ao mesmo tempo, quebra seus paradigmas sem romper com o gênero. A revolução de Watchmen, além de incentivar outras obras mais densas nos quadrinhos, mostrou o caminho para heróis mais humanos, complexos e sombrios. Watchmen virou filme em 2009, com direção de Zack Snyder e em 2019 uma série da HBO.

E falando em heróis, mitos e salvadores da pátria é impossível não lembrar o herói que já nasceu quebrando todos os paradigmas e contrariando todas as expectativas de quem carrega esse título, antes ainda de Super Homem alçar seu primeiro voo. Em 1928 era publicado o livro de Mário de Andrade, Macunaíma o Herói sem Nenhum Caráter (clique aqui para ler a resenha). Macunaíma não foi um herói de quadrinhos, até por que seria impossível enquadrá-lo, mas foi e sempre será um herói genuinamente brasileiro. Ganhou seu filme, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e estrelado por Grande Otelo. Macunaíma, ao lado do bom soldado Schweik , seu meio irmão tcheco, lidera a trupe dos mais heroicos anti-heróis.

heróis
Macunaíma (ainda negro) encarnado por Grande Otelo, um herói brasileiro.

Our Boys

Our Boys-4.jpg

Série – Criação de Hagai Levi, Joseph Cedar e Tawfik Abu-Wael – Israel – 2019.

Our Boys talvez seja a obra que mais reúna conflitos por fotograma na história do audiovisual. Conflitos entre polícia e terroristas, entre pais e filhos, entre esquerda e direita, entre religiosos e laicos, entre moderados e belicosos; conflitos internos, profissionais e de consciência de um agente que investiga o universo de onde se originou, de uma terapeuta em relação a seus pacientes, de um menor de idade que matou outro menor; conflito de um casal que perde seu filho duplamente, primeiro quando este é vítima de um assassinato brutal, em seguida quando vira mártir –  bandeira de um grupo de fanáticos.

Our Boys 5
Jony Arbid e Ruba Blal, os pais que perderam o filho duas vezes.

A série foi baseada nos trágicos eventos de 2014: o sequestro e assassinato de três jovens israelenses por dois membros do Hamas, seguido do sequestro e assassinato de um jovem palestino por três israelenses religiosos, eventos que culminaram na guerra entre Israel e a Faixa de Gaza. Esse material explosivo é articulado em um drama denso que, além de eletrizar o espectador, aborda de forma ampla e profunda o emaranhado complexo que é a convivência entre árabes e judeus nesse pequeno pedaço de terra banhado pelo mediterrâneo.

our boys
Elkabetz no papel do investigador do Serviço Secreto

Our Boys foi criada e dirigida por dois israelenses  e um palestino. A opção ousada de focar no sequestro e assassinato de Mohammed por judeus, sendo o sequestro anterior, de jovens israelenses por árabes, apresentado apenas como gatilho para a trama principal, gerou críticas em alguns campos da sociedade israelense. O primeiro-ministro Netanyahu a taxou de antissemita. Não poderia estar mais errado. A série honra uma tradição judaica milenar de questionar moralmente os seus atos, mergulhando muitas vezes em zonas escuras em busca de luz. É absolutamente fiel ao clima de comoção que tomou conta do país durante a busca e o luto pelos rapazes judeus, ao clima de revolta que tomou as ruas árabes após o assassinato de Mohammed e à incredulidade, por parte da sociedade israelense, que judeus poderiam ter perpetrado esse tipo de vingança. Os três núcleos dramáticos de Our Boys constituídos pela família de Mohammed, pelos jovens religiosos que o sequestraram e pelo investigador do serviço secreto formam um triângulo muito representativo do conflito que a obra aborda, sem cair no maniqueísmo fácil. A colaboração estreita entre árabes e judeus na criação do roteiro (que durou um ano e meio), estendeu-se para o set entre atores de ambas as etnias, cada um agregando ao processo suas sensibilidades individuais, o que enriqueceu a série, conferindo autenticidade e aprofundando a dimensão dos universos abarcados. Essa colaboração, como não poderia deixar de ser, teve seus momentos de tensão e de alta voltagem.

Our Boys1
Adam Gabay como Avishay, o jovem ortodoxo conflituado.

Na tecitura de Our Boys se destacam também a maneira como as imagens ficcionais se integram com imagens documentais; a qualidade dos diálogos e o excelente trabalho de atores, com ênfase para as interpretações de Shlomi Elkabetz ( o investigador), de Adam Gabay (Avishay, o assassino de 16 anos), de Jony Arbid e Ruba Blal Asfour (pais de Mohammed).

Our Boys foi produzida pela Keshet e pelo canal HBO, onde está sendo exibida. O emaranhado de conflitos abordado em seus dez episódios materializa na tela a panela de pressão que é o oriente médio e mostra como uma ação espontânea de poucos loucos ou fanáticos pode tornar-se incendiária, criando um contexto de fio desencapado, mesmo em uma sociedade onde a maioria  deseja viver em paz. O ditado onde um não quer dois não brigam passa longe da realidade que originou Our Boys.

Chernobyl

chernobil

Minissérie – criação de Craig Mazin e direção de Johan Renck –  EUA/Inglaterra – 2019.

Chernobyl é uma série espetacular. Em seus cinco episódios, que somam 330 minutos, a densidade dramática se mantém à altura do trágico acidente ocorrido na usina de energia nuclear de Chernobil, em 1986, na então União Soviética. A estrutura narrativa é meticulosamente construída em dois eixos principais: a investigação da causa da explosão;  a busca frenética pelos meios de lidar com seu efeito devastador. O cruzamento entre os dois eixos, aliado à quebra da cronologia linear, mantém o espectador em suspense permanente. A direção e o roteiro vencem o intricado desafio de traduzir para a tela as informações científicas do universo da física nuclear. Para isso a sequência eletrizante do tribunal, no último episódio, é fundamental. A luz e a direção de arte se articulam na criação de um labirinto apocalíptico e opressor, que se propaga pelos mais escuros ambientes da usina devastada até as imensas salas de reuniões do poder.

chernobil 1
Labirinto apocalíptico nas entranhas de Chernobil

A série, baseada em vasta pesquisa, causou polêmica com relação a sua fidelidade aos fatos reais, tanto no meio científico, quanto entre os que viveram a tragédia. A mim incomodou o  foco na crítica ao regime soviético, principalmente pela vilanização maniqueísta de dirigentes e políticos em contraponto ao heroísmo abnegado dos cientistas e do povo, apresentando o desastre como a gota d’água – a explosão simbólica de um regime que já estava podre. Essa percepção está presente em outras obras, como em Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch (clique aqui para ler a resenha), por exemplo, mas a partir de um processo de profunda investigação e autorreflexão, sem dar a impressão, como na série, de que no ocidente um desastre como esse jamais aconteceria. No atual contexto de aquecimento do planeta seria mais pertinente focar em como a ganância e o descaso, em escala global, podem acabar em tragédia irreversível, do que ridicularizar o falecido comunismo soviético. As interpretações de Jared Harris (Legasov),  Stellan Skarsgard (Shcherbina) e Jessie Buckley (Lyudmilla Ignatenko), todos personagens reais,  são impecáveis; os diálogos em inglês, no entanto, com alguns informes de rádio e anúncios oficias em russo, aliados a alguns personagens estereotipados, atenuam a força do trabalho dramático dos atores.

chernobil 2
Cientista versus dirigente político, Jared Harris e Stellan Skarsgard

Mesmo assim, Chernobyl é uma obra impactante, espetacularmente impactante. Aborda um tema atualíssimo ao evocar o fantasma de um império que se autoextinguiu e dramatizar um evento que assombrou o mundo há menos de 35 anos. Produzida pela Sky Atlantic e HBO, foi indicada ao Emmy em dezenove categorias e ganhou como melhor série, melhor roteiro e melhor direção.