Livro de Leonardo Padura, Cuba – 2002
Pegue um ou dois personagens reais, um maço de fatos históricos de épocas diferentes, uma trama repleta de mistérios e um bom coprotagonista ficcional. Misture, ou melhor, amalgame tudo isso, acrescentando um ar de tragédia salpicado de sensualidade e coloração tropical. Leve ao fogo por umas trezentas páginas de tirar o folego. Sirva quente, ou frio. Ninguém prepara melhor esse manjar do que o chef Leonardo Padura, autor do delicioso Hereges e do absolutamente genial O Homem que Amava os Cachorros. E antes desses dois (embora no Brasil tenha sido publicado depois) o esplendido O Romance da Minha Vida, a primeira grande obra de Padura utilizando essa receita. Nela pode se perceber a estrutura, a pesquisa meticulosa e a inteligência que figurariam também na história do assassinato de Trotsky pelo agente soviético Ramon Mercader, a mando de Stálin, e na saga do sumido quadro de Rembrandt que quase desembarcou em Havana trazido por refugiados judeus da Alemanha à bordo do navio Saint Louis.
Em O Romance da Minha Vida, Cuba adquire o protagonismo que em O Homem que Amava os Cachorros é dividido com México, Espanha e União Soviética. E a figura histórica, personagem trágico e real que protagoniza o romance é um poeta, José María Heredia y Heredia, considerado hoje o grande nome da formação da poesia cubana. José María viveu trinta e cinco anos, deles apenas sete, em quatro períodos diferentes, em solo cubano. E mesmo assim tem o título de poeta nacional da ilha caribenha. Além de longos anos exilado, Heredia morreu pobre e foi enterrado em um tumulo sem lápide no México. Só voltou a ser reconhecido em Cuba após a independência da mesma do jugo espanhol.
Padura narra essa tragédia latino-americana, através de três histórias paralelas: a de Fernando, personagem ficcional dos tempos atuais, também um desterrado que volta à Cuba em busca de um misterioso romance que Heredia teria escrito e nunca foi encontrado; a história do próprio suposto romance que na verdade é uma autobiografia e cobre a primeira metade do século XIX; e a história do sumiço do tal manuscrito que engloba várias gerações, fazendo a ponte entre passado e presente. Juntas essas histórias pintam um quadro desolador sobre tirania, desterro, escravidão e prisão que confere a essa história uma dimensão universal.
Um dos pontos interessantes das reflexões despertadas pelo romance é a ligação da Independência com a questão da escravidão, ou mais precisamente, como a elite cubana sempre recuava da ideia de independência, com medo de uma rebelião de escravos como aconteceu no Haiti. Outro ponto para reflexão que o livro desperta é o tema sobre amizade e traição. E sobre o medo que os tiranos têm das palavras, ou da cultura e da arte.
O Romance da Minha Vida, assim como outras obras de Padura, foi publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2019.