A Sociedade da Neve – O Ocultamento

Filme de Juan Antonio Bayona, Espanha 2023

Em agosto de 2018 fiz um post sobre o documentário uruguaio A Sociedade da Neve de 2007. De repente, esse post começou a ganhar inúmeros acessos. Isso se deve, evidentemente, à estreia na Netflix do filme homônimo do diretor espanhol Juan Antonio Bayona. Trata-se de um filme de ficção, sobre o mesmo tema. O filme é baseado no livro de Pablo Verci sobre os sobreviventes da queda de um avião nos andes nevados em 1972.

Em 2007, trinta anos depois do acidente, o cineasta Gonzalo Arijon fez um trabalho muito sério com os sobreviventes que resultou no maravilhoso documentário (para ler a resenha clique aqui). Tinha mais de 50 horas de material gravado com os sobreviventes, familiares e demais envolvidos com o acidente. Muito desse material, obviamente, ficou fora do filme. Gonzalo passou esse acervo ao jornalista Pablo Verci para que escrevesse um livro. O filme da Netflix se baseia nesse livro, que se baseou, por sua vez, no material do documentário. As três obras com o mesmo nome.

Um livro e um filme que falam do mesmo tema, um, derivado do outro, é natural que partilhem o mesmo título. Mas dois filmes com o mesmo nome, já é diferente. Ainda mais quando um deles tem muito mais dinheiro e toda uma plataforma internacional por trás de seu lançamento e nem menciona em seus créditos a existência do outro.

Arijon, o diretor uruguaio, comentou em entrevista que está feliz por haver mais um filme sobre o tema e que este filme tenha inclusive sido indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro pela Espanha. Mas o fato de ele ter o mesmo título do seu documentário e não haver nenhuma menção ao documentário nos créditos do filme, se configura, na opinião dele, um ocultamento de sua obra.

Falando do filme em si (o atual, que faz enorme sucesso na Netflix): é um drama do gênero Desastre, com uma pitada de reflexão existencial e um certo aprofundamento psicológico no drama dos personagens que derivam do livro. Mas a dinâmica do filme, o uso de efeitos, principalmente os sonoros, lembra muito os filmes de desastre como Titanic, Inferno na Torre, Volcano, etc. Essas ferramentas são aplicadas em A Sociedade da Neve de maneira muito competente, ainda que espetacular (no sentido do espetáculo), e a luta pela sobrevivência e o retorno dos que não pereceram, geram forte emoção.  No entanto, ele não chega aos pés do documentário homônimo, nos questionamentos provocados pelo filme, no processo de construção da nova dinâmica que se estabeleceu na “sociedade da neve” e na emoção/identificação com os sobreviventes.

Acho interessante assistir aos dois filmes, e comparar as linguagens e recursos de cada gênero. Ambos são trabalhos meticulosos no que se propõem em termos de abordagem.

O filme espanhol, pode ser visto na Netflix. O documentário, estava até certo tempo atrás na Amazon Prime, mas ao menos no Brasil, não está mais disponível.

Cabe lembrar que o incidente nos Andes gerou ainda outros filmes, anteriores e posteriores ao documentário uruguaio, o primeiro foi o mexicano Os Sobreviventes dos Andes, o segundo foi o drama norte americano Alive.

Life is Live

Filme de Dani De La torre – Espanha 2021

Life is Live é um filme de formação, ou coming of age, gênero que aborda o dramático momento de transição de um/a jovem rumo à idade adulta. No filme, embora o narrador/protagonista seja Rodri, são cinco os jovens que encaram o início de adolescência num ritual de passagem que é filmado como uma grande aventura. Curiosamente, as situações, os diálogos e conflitos, inclusive o uso da trilha (com exceção das músicas da época) são os menos importantes na feição do filme, têm um certo ar de clichê, ou fórmulas já  usadas em outras obras sobre adolescentes. O que é especial em Life is Live é a construção da trama como uma grande aventura, que se dá principalmente através das cenas de ação, aquelas  em que o protagonista e seus amigos são perseguidos, ora pelos valentões da escola, ora pela gang de motoqueiros do povoado onde Rodri passa o veraneio. Essas cenas de ação, que acontecem em sua grande maioria em paisagens majestosas de montanhas e lagos, dão o ar de uma jornada especial, inesquecível para os jovens que enfrentam encontros com a morte, com o amor, com a esperança.

Live is Life se passa na Galícia nos anos 80, e utiliza alguns sucessos musicais da época, todos em inglês.  Inevitavelmente, o filme tem um ar nostálgico, ou como diz a letra da música que dá título ao filme: every minute of the future is a memory of the past. Fica claro que cada minuto dessa jornada do verão de 1985 terá consequências no futuro e nas memórias de seus protagonistas. Felizmente, o filme evita o clichê de informar o que acontece com cada um dos amigos nesse tal futuro. Essa escolha de encerrar o filme ali, quando a turma se despede ao fim da aventura e os destinos de cada um permanecem em aberto, resulta num dos momentos mais sensíveis da obra.

A música Live is Life é da banda Austríaca Opus. O filme Live is Life pode ser visto na Netflix.

Intimidade

Série, criação de Verónica Fernández e Laura Sarmiento, Espanha 2022

Intimidade é uma das mais instigantes obras para TV  que  tratam do avanço das mulheres em  territórios que outrora eram predominantemente masculinos e da reação dos que não conseguem encarar este avanço. O choque entre progresso e reação é o motor dramático da série. O combustível é a violação da intimidade.

Seis mulheres, de diferentes idades, profissões e contextos sociais são envolvidas nos dramas causados pela publicação de dois vídeos que mostram duas delas durante o ato sexual. Malen é vice-prefeita de Bilbao e o vídeo, gravado na surdina, é publicado para acabar com a carreira da jovem política em ascensão. Ane é operária em uma fábrica, e as fotos e o vídeo, enviados e compartilhados em seu local de trabalho, têm o objetivo de humilhá-la por mera vingança. As outras quatro mulheres: a investigadora de crimes digitais que busca desvendar os dois casos, a irmã de Ane, a filha adolescente de Malen e a conselheira política da vice prefeita, têm seus próprios conflitos que são exacerbados em função do vazamento. A cadeia de reações machistas, desencadeada pelo material “explosivo”, engloba homens e mulheres, jovens e adultos.

Ane, Verónica Etchegui, avançando em território masculino.

A trama se desenrola entre o espaço da política e poder, a fábrica de maquinas pesadas, a polícia, a escola e as famílias. É admirável como o roteiro de Intimidade consegue conectar os personagens e cenários de dois casos paralelos, criando a dimensão de fenômeno social, sem abandonar a dimensão pessoal, o impacto de cada um dos casos nos indivíduos envolvidos. É mais admirável ainda como roteiro e direção constroem as personagens dessas seis heroínas, não apenas em cima de sua força, mas também de suas fragilidades.

Outro ponto interessante é que é uma produção do País Basco, conhecido no século passado pela luta sangrenta dos separatistas do ETA (ver o post Pátria). Com o fim do conflito a região resolveu investir no progresso e na cultura, criando, entre outras coisas, um polo de produção audiovisual. A série é falada em espanhol, mesclado eventualmente com o Euskera, o idioma local.

Intimidade, com Itziar Ituño e Verónica Etchegui, nos papéis de Malen e Ane, pode ser vista na Netflix.

Mães Paralelas

Filme de Pedro Almodóvar – Espanha 2021

O filme Dor e Glória, lançado em 2019  parecia uma despedida de Almodóvar dos longas metragens. O protagonista, um cineasta de sucesso sofrendo um bloqueio de criatividade e vários problemas de saúde, faz as contas com o seu passado.  As entrevistas de Pedro por ocasião do lançamento também apontavam para a aposentadoria. O cineasta falava de seus problemas na coluna e o quanto o trabalho no set exige fisicamente do diretor. Felizmente, foi alarme falso. Dois anos depois surge Mães Paralelas, filme que resgata vários elementos Almodovarianos. Outra surpresa: a obra é também lançada na Netflix (cinco meses após sua estreia nos cinemas), ao lado de outros 11 filmes do espanhol licenciados para a plataforma de streaming.

Almodóvar, de cara, faz uma homenagem à velha e boa película (embora Mães Paralelas tenha sido captado em digital). Janis, a protagonista, é fotógrafa, e as fotos que bate na cena de abertura se integram na arte dos créditos iniciais com a identificação de borda da emulsão Kodak Tri X, um filme em preto e branco muito utilizado na era analógica. Falando em fotografia, o filme todo é rodado com uma grande profundidade de foco, deixando nítidos todos os elementos dispostos nos vários planos do quadro. Esse efeito confere ainda maior impacto à cena final, em que ossadas encontradas em uma vala comum recuperam sua humanidade.

O fetiche do diretor pelas cores quentes é representado em Madres Paralelas pelo vermelho, que neste filme ganha, além da função estética, uma conotação política. Duas de suas atrizes fetiche, Penélope Cruz e Rossy de Palma também se fazem presentes. Outro elemento Almodovoriano é o melodrama calcado numa trama repleta de situações impossíveis e rompedoras de tabus, uma mistura de telenovela com arte questionadora. A figura da mãe, outro tema fetiche de Pedro,  integra-se aqui à uma questão mais ampla, a de identidade, da conexão entre descendentes e antepassados que por sua vez se liga à questão política, mais evidente nesta do que em outras obras do diretor.

Penelope Cruz e Milena Smit são as mães paralelas.

Mães Paralelas é estruturado em torno de duas tramas principais. A que figura em primeiro plano é o encontro entra Janis (40 anos) e Ana (20 anos), duas grávidas solteiras que se conhecem na maternidade, prestes a darem à luz e tornarem-se mães solteiras. As duas parem no mesmo dia e criam um vínculo especial. Em segundo plano, mas não menos importante, é o drama da autorização pela escavação de uma fossa, ou vala comum onde foram enterrados aldeões assassinados por falangistas durante a Guerra Civil Espanhola (para mais detalhes sobre a questão, leia O Silêncio dos Outros). Numa Espanha em que a extrema direita ressurge (como parte de um fenômeno mundial) e tenta vender narrativas alternativas sobre o que ocorreu naquele conflito fratricida, Almodóvar se posiciona  contra o esquecimento e pelo resgate da dignidade dos assassinados e seus familiares. Faz isso de forma comovente e absolutamente criativa. A ligação entre as duas tramas aponta que os dramas individuais não podem ser separados dos dramas coletivos. Em outras palavras, quer queria quer não, o individuo, qualquer individuo que vive em sociedade, é um ser político. 

O filme tem duas indicações ao Oscar nas categorias de atriz principal e trilha sonora. Penélope Cruz ganhou o prêmio de melhor atriz pelo papel de Janis no festival de Veneza.

Pátria

Livro – Fernando Aramburu – Espanha – 2016.

Pátria é um crime perfeito. Sua narrativa é tão envolvente que chega a encobrir a sofisticação do texto e a genialidade de sua estrutura, como um crime perfeito encobre os rastros do autor. Em outras palavras, o leitor se esquece que está lendo e é absorvido pela trama e pelas vidas de Miren, Bittori, Nerea, Txato, Joxe Mari, Arantxa, Joxian, Gorka e Xabier. Como um crime perfeito, o livro evidencia o drama das vítimas e nos desafia com seus mistérios.

Normalmente, os romances de vulto dão maior importância aos personagens, usando a história como elemento para testá-los e expô-los, enredando-os em problemas e conflitos. Em Pátria, os protagonistas também parecem ter maior importância do que o enredo, porém mais do que um romance de personagens a obra é um tratado sobre as relações, ou sobre os mecanismos ocultos que criam (e destroem) vínculos entre amigos, vizinhos, amantes, cidadãos, pais, filhos, companheiros, cúmplices.  Pátria coloca esses laços à prova no contexto da luta armada do ETA, num vilarejo do País Basco em um período de três décadas. Seu evento central é o assassinato de um dos protagonistas e suas consequências na vida das famílias da vítima e a do algoz.

Fernando recheia seu texto em espanhol com termos em euskera (o idioma basco, proibido na Espanha durante a ditadura franquista). O euskera, de raiz desconhecida, é muito diferente de todos os outros idiomas europeus e sua sonoridade traz um tempero especial ao texto e confere autenticidade aos diálogos e personagens. O autor utiliza ainda, na condução da história, um narrador onisciente em terceira pessoa. Esse narrador observador transforma-se, de repente, e apenas por instantes, em cada um dos nove personagens, através de breves expressões em primeira pessoa. O recurso soaria estranhamente esquizofrênico se não fosse articulado de forma genial. Outro elemento sofisticado é a aplicação meticulosa de dosagens  de humor, por um lado, e de melodrama, por outro, na tragédia que envolve as duas famílias.

Aramburu estrutura seu romance como uma obra de Gaudí: arquitetura arrojada e construção sólida. A impressão é que não há regra ou planejamento por trás da quebra da cronologia do texto, nem da determinação dos capítulos e sequências em que cada personagem assume e reassume o protagonismo. Impressão enganosa. Esse vai e vem no tempo e entre os personagens é uma aula de como envolver o leitor e enriquecer o painel de relações, aspirações e conflitos através da estrutura. O romance oferecido em fragmentos, num encadeamento que preserva a fluidez, acaba nos tornando cúmplices do crime perfeito.

O assassinato de Txato – um crime ou ação terrorista,  para alguns, e um ato patriótico para outros – suscita questões sobre nacionalismo, independência e fanatismo. E reflete sobre como a luta por uma causa justa pode se desvirtuar, quando a causa é colocada acima de tudo e de todos.

A narrativa envolvente de Pátria, a sofisticação da escrita e os temas que aborda resultaram num casamento perfeito entre sucesso comercial e reconhecimento literário. O livro virou série da HBO, a primeira série original espanhola da emissora. O autor se emocionou ao assistir a adaptação televisiva, e revelou que não consegue mais pensar em seus personagens sem enxergar os atores que dão cara e voz às suas criaturas.

Dor e Glória

Filme de Pedro Almodóvar – Espanha – 2019.

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No seu vigésimo segundo filme o diretor espanhol expõe a sua vida pessoal como não o fez em nenhum outro.  Dor e Glória é uma autobiografia?  Seu protagonista  é um cineasta de sucesso que está envelhecendo (Almodóvar completará, em setembro, setenta anos),  é homossexual e sofre acachapantes dores de cabeça, como vem sofrendo o diretor e roteirista. A cidade de Madri é seu quartel general. Seu figurino é baseado no  guarda-roupa de Almodóvar.  Não há dúvida que Salvador Mallo é o alter ego de Pedro, porém, ele declarou no lançamento: “Dor e Glória não é minha autobiografia, mas sim o filme que me representa mais intimamente.”

Dor e Glória
Pedro Almodóvar e Antonio Banderas, ego e alter ego.

Nessa representação íntima Almodóvar baixa o tom das cores, da intensidade dramática de seus personagens, do erotismo e do escracho (sem abrir mão do humor) e depura o tom da sensibilidade que se revela nos detalhes, nos pequenos gestos, na estrutura narrativa, na inteligência de armar os planos.  O filme vai além da autobiografia na exposição pessoal. Não é exatamente fiel aos fatos, mas Almodóvar não está interessado em roteirizar a sua história de vida. Dor e Glória, mais do que um cabedal de lembranças, é  um acerto de contas com alguns fantasmas. Os dois maiores são a conversa que não teve com sua mãe sobre sua sexualidade; e o terrível medo do momento em que se aposentará do set. Ao encarar este último fantasma, ao encenar as circunstâncias e o tempo em que não mais poderá filmar, Almodóvar presta uma das mais belas homenagens a sétima arte já feitas na grande tela. É curioso que escolhe uma droga como um dos elementos simbólicos dessa homenagem. O  vício é um motivo recorrente no filme. Salvador perdeu um amor de juventude para a heroína e busca o cavalo, já na velhice, para tentar aliviar suas dores (o que Almodóvar nunca fez em sua vida real).  Vício é também o nome de um conto de Mallo que fala desse amante que perdeu, porém inicia lembrando as sessões de cinema em seu povoado de infância, os filmes projetados em um enorme muro branco. Fica claro que o verdadeiro vício do qual o filme trata é… filmar. Vício que cobriu o diretor de glória e cuja abstinência (que experimentou por conta de cirurgia na coluna) causa extrema dor. A chave para decifrar esse código e entender que o filme todo é uma grande declaração de amor ao cinema encontra-se, principalmente, na cena final, cena de genialidade simples e arrebatadora.

De sutileza arrebatadora é também o trabalho de Penélope Cruz que interpreta (o que só ficamos sabendo na surpreendente cena final) um duplo papel. Asier Etxeandia, como o ator Alberto Crespo (seria o alter ego de Banderas?), e Cecília Roth, como Zulema, se encaixam perfeitamente nos tons delicados de Dor e Glória  e exploram seus personagens com grande sensibilidade. Antonio Banderas, na pele do alter ego do diretor, se sai bem em um desafio diferente da maioria dos papeis que interpretou em sua carreira, sem, no entanto, chegar à excelência dos colegas.

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Penélope Cruz e atores ao lado do diretor – curtindo o vício de filmar.

Em 2017, quando Pedro presidiu o júri de Cannes, fez uma declaração em relação à polêmica dos filmes da Netflix (para mais detalhes clique em Roma): “Respeito as novas tecnologias, mas enquanto continuar vivo vou defender algo que muitos jovens hoje não conhecem: a capacidade hipnótica de uma tela. Acho que a tela em que vemos um filme pela primeira vez não pode ser parte da nossa mobília, temos que ser minúsculos (perante a tela) para podermos entrar dentro das imagens e sermos capturados pela história.” Dor e Glória é licenciado pela Netflix, mas os irmãos Almodóvar recusaram a polpuda oferta feita para que a obra estreasse na plataforma de streaming. Veja o filme no cinema, enquanto  está em cartaz, para deixar-se capturar pelas imagens de Almodóvar.

O Silêncio dos Outros

O silencio

Filme de Almudena Carracedo e Robert Bahar, Espanha, 2018.

Antígona quer enterrar seu irmão, cujo corpo está proibido de ser sepultado por ordem do Rei Creonte. O dever sagrado da irmã colide com a vontade real que é Lei. Antígona entende que há princípios morais que superam a força da Lei e a confronta. Arca com as consequências. A tragédia de Antígona (Sófocles 442 AC) é um dos pilares dramáticos da cultura ocidental. O desejo de enterrar seus mortos acompanha o ser humano desde os primórdios da civilização. Maria Martín quer enterrar a sua mãe, assassinada com outras duas mulheres e vinte e sete homens e jogada com eles em uma vala comum. Sobre essa vala hoje passa uma estrada. Maria coloca flores no gradil da margem da estrada assolada por veículos pesados.  É a cena que abre O Silêncio dos Outros. A tragédia de Maria Martín é uma de muitas histórias que o documentário apresenta, construindo, a partir de uma colcha de retalhos e fragmentos de casos, uma narrativa emocionalmente arrebatadora.

A Espanha passou quase quatro décadas sobre o domínio do generalíssimo Franco, uma ditadura fascista que só começou a mostrar brechas com a morte do ditador. No período de transição a esquerda lutou por uma anistia aos presos políticos que foi aprovada no parlamento como uma lei de anistia para ambos os lados. Mais do que isso, foi pensada como uma lei de esquecimento para unir o país, com vistas ao futuro. Essa Lei de esquecimento não permite à Maria exumar os ossos de sua mãe e levá-los ao túmulo da família; não permite investigar o roubo dos bebês de mães solteiras praticados em maternidades por quarenta anos; não permite investigar a  tortura e assassinato nas prisões do antigo regime, entre outras atrocidades perpetradas naqueles tempos.

O Silêncio dos Outros acompanha um grupo de pessoas, todas vítimas – em circunstâncias muito distintas – do regime franquista, que buscam justiça, apesar da Lei de Anistia Geral, e enfrentam o conflito que Antígona enfrentou, como resultado da luta fratricida entre seus irmãos: obedecer a Lei ou o princípio moral? O documentário discute as consequências da decisão de varrer para baixo do tapete, eliminar da história os crimes contra a humanidade praticados na época, em nome de uma reconciliação.  O Silêncio dos Outros é um filme sobre a consciência – a individual e a coletiva.

Foram seis anos de filmagens e um ano de edição, em muitas ocasiões a equipe era praticamente a dupla de direção,  Almudena operando a câmera e Robert fazendo o som. Esse longo período ao lado dos personagens, a equipe mínima e uma sensibilidade ímpar resultou em uma intimidade raramente lograda em documentários, quando a câmera torna-se cúmplice dos sujeitos captados por ela. A identificação gerada por essa intimidade é que leva ao arrebatamento emocional do filme, colocando o espectador junto aos personagens nas situações mais dramáticas, de avanço e retrocesso em sua batalha. A edição é outro ponto alto da obra ao costurar todas as histórias como uma história única, sem anular a individualidade, a especificidade e a força de cada caso e personagem. A relação entre instituição e indivíduo, entre o macro e o micro, entre História e histórias é primorosamente construída através da montagem.

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Monumento baleado, atentado contra a memória.

O filme utiliza os meios convencionais do cinema documentário: imagens de arquivo, depoimentos, narração em voice over e filmagem direta de eventos. Parte para uma abordagem mais poética ao filmar o monumento para as vítimas do franquismo em El Torno, obra do escultor Francisco Cedilla. Três das esculturas foram baleadas poucas horas após a sua inauguração. O escultor decidiu deixar os buracos das balas como complementação da obra.

Para os brasileiros o filme adquire um sentido especial já que o país seguiu o exemplo espanhol com a Lei da Anistia ao fim do período da ditadura militar (1964-1985). O documentário menciona vários países da América Latina que, apesar de terem seguido inicialmente esse exemplo, romperam com a Lei e decidiram, em dado momento, julgar o seu passado. Infelizmente, o Brasil não está entre eles. Talvez por isso hoje viva a aberração de ter eleito, democraticamente, um presidente abertamente saudosista desse período.

O filme foi produzido, entre outras empresas e instituições, por El Deseo, a produtora de Pedro Almodóvar.

 

Mar Adentro

 

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Filme com direção de Alejandro Almenábar – Espanha – 2004.

David Goodall, aos 104 anos de idade, decidiu que não queria mais viver. Teve que se deslocar da Austrália à Suíça, já que seu país não permite o suicídio assistido. Vi a sua entrevista gravada na véspera do momento em que se despediria da vida, auxiliado pela Exit International e cercado por familiares. Lúcido, explicou os seus motivos e cantarolou parte da Nona Sinfonia de Beethoven com voz animada. Lembrei-me do maravilhoso Mar Adentro, de Alejandro Almenábar, filme que encara com coragem a questão espinhosa do suicídio/eutanásia, baseado no caso de Ramón Sampedro, tetraplégico, que pleiteou na justiça o direito de morrer.

Apesar de girar em torno da vontade de Ramón de por fim à vida, a morte não é o tema de Mar Adentro. O filme trata da liberdade. A liberdade tolhida pela condição física e a liberdade de escolha como refúgio da dignidade; a liberdade da imaginação como último reduto de resistência, quando todas as outras são retiradas. Essa liberdade é expressa no filme pelos movimentos da câmera que abraça os personagens, flutua ao seu redor, alça voos, cria asas, mergulha mar adentro. A linguagem cinematográfica nos conduz por uma viagem para fora do quarto que abriga o corpo inerte de Ramón, para dentro de sua mente racional e poética. A luz e a palheta de cores primaveris criam um contrapeso ao labirinto de conflitos sem soluções que cerca os personagens. É, assim como o humor de Ramón, uma maneira de dizer as verdades, tocar em feridas, sem afastar as pessoas. Ele explica a um interlocutor seu sorriso constante: “quando você não pode escapar, depende totalmente dos outros, você aprende a chorar sorrindo”. Seu sorriso, no entanto, não parece um pranto disfarçado, e sim uma expressão de força.

Quando se constrói, ou se analisa um personagem de filme dramático, é importante identificar seu objetivo na vida, no filme (que é um recorte nessa vida) e em cada uma das cenas. Esses objetivos, e os obstáculos que o personagem enfrenta ao buscar atingi-los, são a base da condução dramática da obra. O protagonista de Mar Adentro tem o mesmo objetivo no filme e na vida: morrer. A morte como objetivo de vida já parece, em si, um paradoxo. Essa vontade de Ramón entra em conflito com as leis da sociedade onde vive, com a crença da religião dominante na cultura do país e, principalmente, com os sentimentos das pessoas que o amam, que cuidam dele com abnegação e carinho. Este último choque gera um conflito interno para Ramón, mas não o faz desistir de sua vontade. Penetrar na alma de personagem em condição tão extrema, com conflitos tão complexos foi certamente o grande desafio de Alejandro, na direção, e de Javier Bardem, que conferiu ao personagem uma força ímpar. A maquiagem especial e a (in)expressão corporal foram dois fatores que ajudaram o ator nessa transformação, além de sua pesquisa na unidade de tetraplégicos do hospital de Toledo. Os atores coadjuvantes, todos, sem exceção, com destaque para Celso Bugallo e Mabel Rivera, que interpretam o irmão e a cunhada de Ramón, logram criar personagens críveis e heróicos no ambiente rural da Galícia.

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A música tem papel importante na condução dramática, tanto em nível diegético – Ramón é fã de Wagner e Beethoven e os escuta frequentemente – como no uso extradiegético. O som dramático-romântico dos compositores clássicos alicerça o clima emocional, ao lado da trilha original contemporânea. Almenábar assina também a trilha do filme, além da direção, co roteiro e montagem. Todos esses elementos: o argumento, os temas abordados, a solidez do roteiro, e principalmente a interpretação sensível e a gramática poética dos planos, fazem do filme uma obra grandiosa, destacando ainda mais o talento de seu realizador.

Almenábar despontou como um diretor promissor em seu longa de estreia, Tesis (1996) , chamado no Brasil de Morte ao Vivo. Seu segundo filme Abre Los Ojos (Preso na Escuridão), ganhou versão norte americana dirigida por Cameron Crowe, com o título de Vanila Sky, em 2001. O filme e a refilmagem chamaram atenção de Tom Cruise que produziu o terceiro filme do diretor espanhol Os Outros (2001), estrelado por Nicole Kidman. Os três são filmes de suspense em alta voltagem, com tons diferentes de terror e fantasia e têm uma narrativa peculiar. Em Mar Adentro, o diretor abandona o suspense e embarca no drama, e atinge um patamar ainda mais alto de excelência. O filme foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005, o que escancarou para Almenábar as portas de Hollywood, que já estavam abertas desde Abre Los Ojos. Dirigiu ainda Ágora (Alexandria), lançado em 2009, e Regressão, em 2015. Filmes que não tiveram a mesma ousadia e qualidade narrativa das suas obras iniciais. No momento está em pré-produção de Mientras Dure la Guerra, que se ambienta na Guerra Civil Espanhola. O filme, que é de certa forma uma volta à Espanha, deve ser lançado em 2019.

2666

Bolano

Livro de Roberto Bolaño, Espanha, 2004.

2666 é um livro difícil. Difícil por sua abordagem crua e cruel de temas complexos, pelo excesso de histórias e personagens, estilos narrativos e referências e como todos esses elementos se entrelaçam, pelo  fato de não ter sido totalmente concluído antes do falecimento do autor (que o escrevia sabendo que tinha os dias contados), o que suscita a dúvida se a falta de desfechos se deve ao seu falecimento ou é conceitual, mostrando que nenhuma história é conclusiva, é apenas um desdobramento – às vezes lógico, às vezes aleatório, às vezes orgânico – de outras histórias.

Estruturalmente, 2666 é dividido em cinco partes, com uma abordagem temática que transita entre dois universos. A primeira parte apresenta quatro críticos literários, de diferentes países, apaixonados pela obra de Benno Von Archimboldi e deslumbrados pela figura do escritor alemão, cercada de mistérios. Na obsessão de encontrá-lo, acabam seguindo um boato que aponta para Santa Tereza, uma cidadezinha obscura no norte do México. A segunda trata de um professor universitário e de sua filha emigrados da Espanha, que moram nessa cidade, próxima à fronteira com os EUA, e cercada pelo deserto de Sonora. A terceira tem como personagem principal Fate, um jornalista norte-americano, negro que é designado, por uma fatalidade do destino, a cobrir uma luta de boxe no norte do México. Lá conhece vários jornalistas e ouve falar, pela primeira vez, sobre o assassinato de mulheres em Santa Teresa. A quarta parte, a mais difícil do romance, conta a história desses crimes. A cronologia deles é narrada como se fossem boletins de ocorrência. São relatos técnicos, factuais e detalhados sobre cada um dos homicídios, que se intercalam com as histórias de policiais, políticos, padres, jornalistas, operárias, traficantes, advogados, diplomatas, favelados, assassinos e vítimas. Essas histórias, assim como as investigações, parecem avançar na solução do mistério, mas desembocam em nada, como se transitassem em um labirinto de ruas sem saída. A quinta parte conta a saga do escritor alemão Archimboldi, e como ele acaba comprando a passagem que o leva a Santa Teresa, centro gravitacional de 2666.

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Os dois universos distintos, cuja relação é um dos principais temas do romance, são: o mundo das artes, principalmente o universo literário; e o mundo das atrocidades, representado pela Segunda Guerra Mundial, pelo racismo e pelo fenômeno inexplicável dos crimes contra as mulheres no norte do México. A conexão principal entre os dois universos: ambos são frutos da ação humana, são duas faces da mesma moeda. Bolaño mergulha nas camadas mais profundas dessa relação para fazer uma reflexão do quanto esses campos são realmente opostos. Abarca nessa análise o mundo clássico europeu e o universo latino-americano, ainda em ebulição, e pairando sobre eles o império norte-americano e a globalização cujo símbolo maior (no romance) são as maquiladoras.

 

 

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Para além de imperfeições ou das qualidades literárias, 2666 tem o mérito de trazer à tona os terríveis crimes contra as mulheres na cidade de Juarez (no livro, a cidade fictícia de Santa Teresa), crimes que seguem acontecendo em proporções epidêmicas, sem solução nem explicação, até os dias de hoje. Para um relato jornalístico sobre o tema vale a pena conferir o livro Huesos en el Desierto de Sergio González Rodríguez, jornalista, um dos personagens reais homenageado em 2666.

Não há no romance nenhuma explicação para o seu título. O número 2666, no entanto, é citado em Amuleto, obra anterior de Bolaño. A protagonista/narradora sente que a rua onde caminha parece, naquela hora da noite, com um cemitério, “… não com um cemitério de 1974, nem com um cemitério de 1968, nem com um cemitério de 1975, mas com um cemitério do ano de 2666, um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo”.

 

A Morte de Luis XIV

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Filme de Albert Serra. Portugal/França/Espanha. 2017

A Morte de Luis XIV não é um filme fácil. Pelo tema e por sua abordagem. Trata-se de uma obra sobre o fim e sobre a nossa impotência frente a esse fim. Ela acompanha os últimos dias do soberano que teve o reinado mais longo que a história conhece e, em boa parte desses longos anos, foi o homem mais poderoso da Europa. Uma pequena dor na perna o incomoda e depois o debilita. Uma mancha insignificante aparece na mesma perna e um de seus médicos o tranquiliza quanto à gravidade da situação. Sua saúde começa a se deteriorar e seu ânimo vai junto. A agonia que acompanha o Rei Sol se reflete em seus médicos, em seus conselheiros e serviçais, em sua amante, na corte como um todo. E é através desse comportamento da corte e do Rei, sem grandes dramas, mas com pequenos gestos cheios de rituais e requififes, que o filme coloca o espectador em uma agonia conjunta de momentos longos, infindáveis, mas que todos nós sabemos, estão levando ao fim.

A obra, apesar de seu ritmo lento e pesado, impacta pela escolha dos planos e pela fotografia. É um filme de closes que raramente se abrem. Assim, vivemos a aflição de adivinhar o todo pelos  fragmentos, o entorno pelos ruídos do que está fora de quadro. É um filme onde o som, minimalista, amplia a dimensão dos enquadramentos claustrofóbicos. Esses planos fechados simbolizam, de certa forma, o distanciamento no qual o rei está embarcando. Distanciamento das festas, da corte, da política, do apetite, da vida. Cada vez mais as quatro paredes do aposento real se fecham sobre ele, aumentando a angústia. Em termos de luz e composição, o filme é uma grande exposição, a 24 quadros por segundo, de telas como que pinceladas por Rembrandt: sombras marcam os espaços do quadro, e os diversos graus de escuridão, em torno de focos iluminados, desenham a topografia da cena. Os movimentos de câmera (inexistentes) reforçam essa sensação. Ao final, estamos assistindo, virtualmente, os anatomistas do Dr. Tulp, retratados pelo grande mestre holandês, filmados em ação pelo diretor catalão.

Luis IV

Jean Pierre Leaud, o ator revelado ainda guri por Truffaut e que virou um dos ícones da Nouvelle Vague, consegue imprimir em minúcias de expressão, em pequenos tremores da mandíbula ou um leve esgar de sobrancelha, o desconforto do soberano em confronto com um poder maior do que o dele. Os doutores que o tratam, tentam ocultar na arrogância o seu próprio desconforto, a sua impotência. Suas discussões desnudam a vaidade humana, mostram o quanto é mesquinha, pequena.

A Morte de Luis XIV retrata um tema de dimensões trágicas como um fenômeno banal, por sua inevitabilidade, pelo fato de ser o destino e a única certeza do que espera cada um de nós. É essa abordagem que o torna um filme difícil de assistir.

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