Fui assistir O Oficial e o Espião, título original: J´accuse, de Roman Polanski, três dias antes que o coronavirus fechasse as salas em Porto Alegre e propiciasse, pela primeira vez, uma quinta feira sem estreias, sem filmes, sem cinema. Havia, além de mim, outras duas pessoas na sessão. Pelo movimento no saguão, as outras salas tinham mais ou menos o mesmo número de espectadores. Contrariando esse cenário de desolação, o supermercado no andar de baixo parecia um vespeiro, mesmo depois das 21 horas. Os corredores estavam cheios, os carrinhos de compras abarrotados, as gôndolas já vazias. O medo de um desabastecimento, pelo jeito, superava o medo de contágio e aglomeração. No dia anterior, ignorando o perigo, manifestantes foram às ruas para demonstrar sua fidelidade ao presidente Bolsonaro. Inicialmente, ele havia recomendado que adiassem o ato, em virtude da pandemia, mas na manhã de domingo voltou a convocar e a conclamar os seus seguidores. Não bastasse isso, foi ao encontro dos manifestantes em Brasília, contrariando a recomendação de seus médicos (e do Ministério da Saúde) para o isolamento, uma vez que várias pessoas de sua comitiva aos EUA haviam sido contaminadas. Na manhã seguinte voltou a cunhar de “histeria” as medidas de precaução, no dia em que faleceu a primeira vítima do vírus no país. Pouco se sabe ainda sobre esse novo vírus. Uma coisa é certa: a pandemia + o presidente é uma combinação explosiva, um pandemônio.
O filme de Polanski também trata de um vírus, um dos mais resistentes da história, o do antissemitismo, da família dos vírus da intolerância. Pode ser altamente letal, dependendo do surto. Curiosamente, as vítimas não são os infectados. Estes são os algozes. J´accuse foca no surto que eclodiu na França em 1894. O Caso Dreyfus, no qual um oficial judeu do exército francês foi condenado por alta traição, com documentos forjados pelo estado maior, virou um símbolo de injustiça. A cerimônia de sua degradação e expulsão do exército tornou-se um símbolo de linchamento público. A carta aberta do grande escritor francês Émile Zola, intitulada J´accuse virou ícone de coragem e resistência contra a injustiça. À época, o julgamento quase provocou uma guerra civil na França. Dividiu a sociedade entre Dreyfusards e anti-Dreyfusards. Acirrou a cisão entre socialistas e xenofobistas, monarquistas e republicanos, militares e intelectuais. Zola foi processado pelo governo e se exilou na Inglaterra, para evadir-se da pena de prisão, seu advogado, Fernand Labori, foi baleado.
O filme e a sua indicação a vários prêmios César também gerou polêmica. Não pela obra, mas pela acusação de estupro que surgiu contra o diretor após a estreia ovacionada no Festival de Veneza. A modelo Valentin Monnier, em testemunho ao jornal Le Parisien, disse que o título do filme, Eu Acuso, a fez sentir-se ultrajada e decidir denunciar o estupro que sofreu em 1975. O diretor negou a acusação. Uma versão francesa do me too tomou forma e conclamou o boicote ao filme. Setores da esquerda francesa denunciaram que o movimento foi articulado pelo governo Macron para ganhar um verniz progressista/feminista, enquanto oprime trabalhadores e imigrantes. A atriz Adèle Haenel declarou que votar pelo filme no César seria cuspir na cara de todas as vítimas de estupro. Samantha Geimer, a quem Polanski estuprou em 1977, disse que a obra deve ser julgada por si e não pela conduta de seu autor, e questionou se alguém que errou no passado deve ser impedido de contribuir para a sociedade com a sua arte. Estrelas como Bardot, Isabelle Huppert e Fanny Ardant defenderam o diretor. Atrizes da nova geração declararam não aceitar o argumento de separação entre autor e obra. Polanski avisou que não iria à cerimônia, pois se armava ali um linchamento contra ele. Temas como abuso, machismo, pré-julgamento, boicote e cancelamento ocuparam as manchetes e redes sociais na França. Apesar da divergência de opiniões, está claro que uma nova consciência está surgindo no combate a outro vírus muito antigo, o machismo.
Mesmo com as pressões, o filme ganhou três prêmios César, entre eles o de melhor direção, e foi bem de bilheteria na França. No Brasil entrou em cartaz sem muito alarde e logo foi derrubado. Não pelo movimento me too, mas pelo corona vírus, junto com outras dezenas de filmes, peças de teatro e espetáculos.