A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Vingança da Vacina

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

O ex-presidente B acordou após uma noite de sonhos intranquilos com a sensação de que o pesadelo no qual tentava, desesperadamente, proteger suas hemorroidas em uma cela escura, estava prestes a desembarcar do universo onírico para a vida real. Um bando de policiais com mandato de busca e apreensão invadiu a sua casa e levou computador, tablets, seu celular e pasmem, seu cartão de vacinação. Antes que fosse algemado correu para telefonar para aliados, políticos, militares, advogados, botando a boca no trombone. Nessas conversas ficou sabendo que seu ex-ajudante de ordens, aquele que tentou reaver as joias sauditas aprendidas pela alfândega antes da fuga presidencial para a terra do tio Trampo, havia sido preso nessa mesma operação, bem como outros assessores do ex-presidente.

No entanto, não se tratava do caso das joias das Arábias. Nem da investigação das fake news. Tampouco tratava-se do atentado à democracia, pelo qual seu ex-ministro da justiça já estava preso. Era um novo escândalo, o da adulteração dos cartões de vacina dele, de sua filha menor de idade, de seus assessores e a mulher de um deles, que viajariam com ele aos EUA na véspera de ele não entregar a faixa presidencial ao governante eleito e despedir-se do foro privilegiado. Como a lei estadunidense exigia comprovante de vacinação para quem entrasse no país, e como o presidente e sua turba preferiam a morte a tomar a vacina (a morte de outros, é claro), resolveram a parada com uma operação extremamente astuta, criando fake cartões de vacinação, forjando documentos e adulterando dados no sistema do SUS, usando para isso o gabinete da presidência. O que mais assustou B, não foi constatar que a PF descobriu a ardilosa fraude, foi o sigilo absoluto da operação policial contra ele. Esta o pegou, literalmente, sem calças. Era um claro sinal que seus comparsas na PF, no Ministério Público e em outros órgãos não tinham mais aquele acesso esperto à informação operacional. Ou continuavam tendo, mas não eram mais seus comparsas.

Logo quando ele se achava mais tranquilo em relação a ser preso e tornou a botar as manguinhas de fora, desfrutando de uma pequena vitória no Agrodoce Show, do qual o ministro de agricultura do presidente L fora desconvidado por sua causa, a PF, em pessoa, invade a sua casa. E ainda por cima apreendem as suas armas.  Levem a Micheque mas não levem as minhas armas!!!, queria ele gritar, mas estava perplexo demais. Acabou não sendo preso, apenas convocado a depor, mas apreenderam também seu passaporte. Droga, pensou ele, falsificar um novo passaporte já é bem mais complicado. Iria ter que fugir para um país do Mercosul. Sentiu-se muito próximo de ver seu pesadelo premonitório se concretizando. Uma onda de autocomiseração inundou seu peito, ameaçou embargar-lhe a voz.

O que encontrarão no celular do ex-presidente, candidato a futuro presidiário? Será que ele, que escapuliu de responder pela morte de milhões de brasileiros, atrasando ao máximo a vacinação, acabará caindo por um falso atestado da vacina? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

The Falls

Filme de Chung Mong-hong, Taiwan 2021

O substantivo the falls tem duplo sentido. Significa as cachoeiras/cataratas, ou as quedas. Ambos significados têm tudo a ver com o filme. The Falls retrata uma jornada de uma adolescente e sua mãe. Uma jornada de inúmeros tropeços que resultam numa enorme queda. E num esforço maior ainda para tentar se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Um dos maiores atributos do filme é o uso das viradas. Não se trata  das viradas clássicas de roteiro na trama ou de transformação do personagem, mas viradas no olhar do espectador, que julga estar acompanhando um determinado enredo e descobre, de repente, que as aparências enganam. Uma dessas “aparências enganosas” é a importância da Covid-19 para o contexto da filme. A Covid se encontra no pano de fundo, tem sua função na obra, mas a doença da qual o filme trata se revelará outra, bem diferente.

Mais uma característica marcante da obra é a delicadeza com que The Falls trata seus personagens, sem poupar-lhes das crueldades e dos tapas da vida, mas com uma sensibilidade ímpar na compreensão de seus conflitos. Essa delicadeza se expressa principalmente no trabalho de atores, em especial o das duas protagonistas Alyssa Chia e Gingle Wang. Em tom contido elas navegam por grandes dramas, torrentes turbulentas por baixo da superfície.

Chung Mong-hong, também conhecido como Nagao Nakashima, é um realizador que vem se destacando por seu estilo singular. Nessa grande sinfonia do fazer cinematográfico ele, além de reger a orquestra, toca os instrumentos de roteiro e direção de fotografia. É um cineasta de olho apurado, texto afinado e grande sinergia com seus atores. Dele é também o intrigante A Sun (2019), disponível na Netflix, assim como The Falls, ambos representando o cinema feito em Taiwan.

Trailer com legendas em inglês

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Presidente Omicron

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.

— Presidente, tem uma nova mutação do Corona fazendo estrago por aí, a Omicron.

— Porra, esses franceses são uns vacilão.

— A origem não é francesa, presidente, é da África do Sul.

— Que que a África tem a ver com o Micron? Tinham que chamar de o Omandela.

— Parece ser a mais contagiosa das variantes até agora, Presidente. Pior que a Beta e a Delta. A  ANVISA recomenda proibir a entrada de estrangeiros do sul da África e exigir de todos os outros o passaporte vacinal.

B, só de ouvir o termo, teve um chilique. Lembrou-se como foi tratado em Nova Iorque, tendo de comer sua fatia de pizza em pé, na rua, após um dia de labuta extasiante falando merda na ONU. Esperto como só ele, transformou o limão em limonada, posando para fotos como homem do povo. Mas igual, foi duro de engolir – a pizza e a humilhação. Odeia vacinas e abomina o passaporte vacinal.

– De novo isso daí? – bradou – a ANVISA, ficou maluca? Vocês tão querendo fechar o espaço aéreo brasileiro? Nem a pau Nicolau!!!!

– Mas o mundo todo tá se protegendo com o passaporte da vacina! – argumentou o diretor da ANVISA que, para sua sorte, não pode ser guilhotinado pelo presidente.

É aí que reside o pulo do gato: fazer diferente de todo mundo! B, um dos políticos mais coerentes do planeta, quando o assunto é matar a sua própria população, teve altos delírios  imaginando o país virando a Meca dos negacionistas da vacina. Turistas pela liberdade do mundo todo se reuniriam aqui para gastar seus dólares, usufruir das belezas brasileiras e infectá-las. Esse cenário assombrou políticos, autoridades de saúde e finalmente o STF que barrou a ideia, determinando a aplicação, pelo governo, do passaporte da vacina.

Antes dessa decisão, o governador de SP, Calcinha Apertada declarou que seu estado iria aplicar a medida nos aeroportos paulistas e exortou outros governadores a fazerem o mesmo. Ainda tirou sarro do presidente dizendo que era óbvio B ser contra o passaporte da vacina já que ele, se saísse do país, não poderia mais entrar.

Pra completar o imbróglio, o site do Ministério da Saúde sofreu um suposto ataque de hackers e o conecta SUS, que emite os certificados de vacinação, saiu do ar. Há indícios que esse ataque, que era para parecer um ransomeware (sequestro de dados para exigir resgate), foi feito de dentro do próprio ministério. Parece que neste governo até os ataques cibernéticos são fake.

B ficou irritado com todo esse barulho em torno de uma variantezinha, justamente no momento em que surge uma ameaça muito mais séria: a ascensão de Moro num País Tropical. O sujeito, que tinha performance pífia nas pesquisas eleitorais, só de entrar no Phodemos e lançar um livro disparou para o terceiro lugar na intenção de votos. Isso acelerou o ingresso de B no Partido L, após dois anos sendo o presidente sem partido, mas no caso dele, só piorou a situação. M almeja conquistar o título de o candidato da terceira via, mas B sabe que ele irá roubar votos seus e não do ex-presidente L. Pela primeira vez lhe ocorreu a possibilidade aterradora de não chegar ao segundo turno e um friozinho percorreu suas hemorroidas. Menos mal que falta quase um ano para as eleições e muita coisa vai rolar até lá, pensou. É um absurdo que a mídia só se preocupe com pesquisas eleitorais há tantos meses do pleito, rezingou, como se ele não vivesse permanentemente em campanha.

Quanto à variante, o mandatário não se preocupa, até tem simpatia pela Omicron, quase assim uma identificação. A política brasileira produziu vários dirigentes nocivos ao longo de sua história. Houve loucos, fracos, ignorantes, vendidos, sanguinários. Seria B a mutação mais monstruosa dessa chaga?  Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

A Casa do Baralho: Um Príncipe em NY

Em um filme de John Landis, de 1988, o jovem príncipe de Zamunda, uma nação africana fictícia, chega a NY fugindo de um casamento arranjado. Ele sonha encontrar um amor verdadeiro, alguém que o ame pela pessoa que é, e não pelo título que tem. Por isso chega incógnito, disfarçado de estudante estrangeiro e arruma trabalho como faxineiro num fast food.

A visita do presidente B à Nova Iorque para discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas lembra um pouco essa comédia. B também chega de uma nação fictícia, um Brasil que só existe na sua imaginação. Igual ao príncipe, ele quer permanecer incógnito, passar por alguém do povo, e por isso entra no hotel pela porta dos fundos, e come pizza em pé, na rua, junto com sua comitiva. Só não viajou em busca do amor verdadeiro, pois odeia amar e ama odiar. Entrou escondido no hotel para escapar da imprensa e dos manifestantes e teve que comer na rua porque não é vacinado. Nova Iorque turbinou ainda mais seu ódio pelo passaporte sanitário.

Inspirado por esse ódio, seu discurso na ONU lembra outra obra clássica: Alice no País das Maravilhas. B fala de um Brasil de economia pujante, que protege o meio ambiente como nenhum outro e que não teve, sob a sua batuta, um caso sequer de corrupção. É um discurso esquizofrênico, dirigido, em tese, para a Assembleia, mas proferido para os ouvidos de seus militantes. Ao  dizer: em 2022, o Brasil voltará a ocupar um assento no Conselho de Segurança, ele pensa: em 2022, o Brasil, me escolherá para mais um mandato. Quando agradece a votação de 181 países entre 190, fantasia sobre o agradecimento que fará a seu povo, no discurso da reeleição. Pinóquio junta-se à Alice nesse palanque e dispara, em tom roBótico, mais mentiras por segundo do que perdigotos. Afirma que as manifestações de 7 de setembro, em defesa da democracia e do seu governo, foram as maiores da história; que o BNDES financiava obras em ditaduras comunistas no governo anterior; que as medidas de isolamento e lockdown são a causa da inflação; que ele socorreu os pobres, impedidos de trabalhar pelos decretos de prefeitos e governadores; que o tratamento precoce deu certo para ele e por isso funciona; que o Brasil, impulsionado pelo retorno de investimentos, devido à confiança do mercado em seu governo, terá um crescimento de 5% em 2022; que a nossa geração de energia é exemplo mundial;  que os indígenas gozam de liberdade e segurança em suas terras ancestrais, e por aí vai. Bem que avisou, no início do pronunciamento, que iria apresentar um Brasil bem diferente do retratado pela imprensa. Foi a única frase em que não mentiu.

Entre discursos que abordaram desafios globais como a pandemia, o  aprofundamento das desigualdades, o aquecimento global, as guerras e a revolução tecnológica, a fala do presidente soou ainda mais estridente. Parecia uma mortadela vencida num sanduíche de pão gourmet.

Para coroar a visita, o ministro da saúde Quemroga foi diagnosticado com Covid e a delegação brasileira foi proibida de entrar no prédio da ONU. Todos voltaram prematuramente para casa (menos o ministro que ficou em quarentena em NY) e assim terminou a participação do Brasil  na Assembleia Geral. Ao aterrissar, B ainda teve que enfrentar uma recomendação da ANVISA para que toda a delegação praticasse o isolamento por 14 dias.

A ONU respirou aliviada, mas o vice-presidente ficou extremante frustrado com a volta prematura do chefe. Chegou a fantasiar a assinatura de um decreto proibindo a entrada de pessoas não vacinadas no Brasil.

Teria funcionado esse golpe da vacina? Terá conseguido o presidente resgatar, nessa viagem, a imagem desgastada do país? Logrará o ministro da saúde completar as compras nova-iorquinas que a primeira-dama não concluiu? E o mandatário, cumprirá a recomendação da agência sanitária? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho

Quinhentos Mil

“Da terra, o sangue do teu irmão clama a mim”. Genesis 4

No dia 19 de junho de 2021, o Brasil chegou a quinhentos mil mortos pela Covid-19. Se seguir no atual ritmo de casos e óbitos, em breve, passará os EUA, recordista mundial nessa macabra marca. A grande diferença (além do tamanho da população) é que, nesse dia, os EUA registraram 169 mortes e o Brasil 2300. Os americanos se aproximam rapidamente da luz no fim do túnel; aqui chegamos a quinhentos mil mortos e seguimos no olho do furacão ou, como dizem os especialistas, estáveis num alto patamar de contágios e mortes.

Desde os tempos antigos, o ser humano usa histórias e símbolos para tentar entender o mundo. E para expressar o que entende e sente busca marcas, imagens, metáforas e figuras de linguagem. Cria livros, filmes, coreografias, músicas, desenhos e esculturas. 500 mil é uma marca. Que representa toda a tragédia de perdas, sequelas, confinamento, paralisação, incertezas e medo. Nossa porção diária nos últimos 15 meses. 500 mil é um número astronômico. Tão grande que o torna, de certa maneira, abstrato.

É como se Florianópolis, a capital de Santa Catarina, desaparecesse do mapa com todos seus habitantes.

É o equivalente à queda de 1000 aeronaves Boeing 747 lotadas, duas por dia; ou quatro tragédias de Brumadinho acontecendo diariamente, nesses 450 dias de pandemia. É maior que os números de mortos na guerra civil da Síria, que dura 10 anos.

Se fizéssemos um minuto de silêncio para cada vítima, teríamos que ficar mudos por 347 dias, ou quase um ano.

Outra maneira de tentar mensurar o tamanho da tragédia é fugir dos números e contar as histórias de vida que foram interrompidas. Dar nome, cara e voz às vítimas. Essa é uma forma de partilhar o luto que cada uma dessas famílias enfrenta, muitas delas com mais de um óbito. Se fossemos produzir uma série com um episódio diário sobre cada uma das vítimas, essa série ficaria no ar por mais de 1370 anos. Um milênio e três séculos. 

Para mim, a grande homenagem às vítimas, a maneira mais impactante de dimensionar a calamidade dos 500 mil até o momento, foi a grande manifestação no dia em que a terrível marca foi atingida. Centenas de milhares de vivos marcharam pelas centenas de milhares de mortos em todos os estados do Brasil, em todas as capitais e grandes cidades, num protesto massivo. Gente que não saia às ruas, contrária à aglomeração, percebeu que deveria correr o risco para clamar, para expressar o tamanho da tragédia e, principalmente, para exigir um basta. Foram espetáculos lindos, pacíficos e poderosos, de luto e de luta.

Nos Estados Unidos, a troca do governo negacionista por uma gestão que respeita a ciência e a vida foi a causa da mudança radical no enfrentamento à pandemia. O resultado é patente na diminuição de contágios, de mortos e, também (para quem só se preocupa com isso), na recuperação da  economia. Por aqui estamos muito distantes ainda da eleição. Por isso, o grito chefe que ecoou nas ruas órfãs de quinhentos mil brasileiros foi: fora genocida! Não é um grito simbólico, nem uma demanda para o futuro. É uma urgência de vida ou morte.

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Começo do Fim?

O governo brasileiro, inspirado pelo ocorrido no Amapá, sofreu um apagão. No estado nortista, foi o incêndio em um transformador que deixou a região inteira no escuro. Em Brasília, foi a derrota do presidente Trampo nas eleições.

A tristeza pelo revés do amigo e o medo de que os brasileiros sigam o exemplo norte- americano seria suficiente para paralisar qualquer um. Mas o presidente B se viu ainda frente a outro problema. Trampo não reconhece a derrota. E B ficou sem saber como agir. Várias autoridades brasileiras, políticos e juristas felicitaram os vencedores Joe Bite-me e sua vice Calma-lá Harris. Líderes das outras nações mandaram mensagens calorosas. Inclusive o primeiro ministro israelense, duas vezes Bi, publicou duas notas: uma felicitando o vencedor, outra agradecendo ao derrotado pela grande amizade. E B quieto, no escuro, se perguntando o que fazer.  Ligou para o amigo, mas havia um sinal estranho na linha: fakiú, fakiú – como se o fone estivesse fora do gancho. Seria uma mensagem cifrada? O presidente experimentou a sensação de grande parte dos brasileiros sob o seu governo, o desamparo. Saiu momentaneamente do apagão para participar de uma atividade de suma importância, a formatura de novos policiais rodoviários. Em seu discurso, ainda em estado de choque, disse que Trampo não era a pessoa mais importante do mundo, essa pessoa era Deus. Foi alertado que cometeu dupla blasfêmia.

Trampo não admite que perdeu a eleição. Alega que foi roubado. Aliás, ele previa essa possibilidade antes das eleições e anunciou que, se não ganhasse, seria sinal inequívoco de fraude. Dizem que ele não tem provas. Como não, se a grande prova é o próprio resultado? Reconheceria a derrota, sem problema nenhum, se o derrotado fosse o adversário.

B, em quase todas as suas atitudes, é uma imitação provinciana de T. No entanto, foi o pioneiro na artimanha da fraude eleitoral.  Ainda em 2018, às vésperas da eleição presidencial brasileira, recuperando-se da fakada sofrida, anunciou que haveria fraude nas urnas eletrônicas. Insistiu na tese, sem apresentar fatos ou provas, mesmo depois de eleito. Não, não estava contestando a sua própria vitória; não fosse a fraude, bravateou, teria vencido no primeiro turno. Nesse quesito superou seu guru Trampo. Este é apenas um mau perdedor. B é também um péssimo vencedor.

A derrota de Trampo pode ser o começo do fim da pandemia negacionista e reacionária que se espalhou pela política mundial. Essa possibilidade assusta a trupe tramposa e por isso esperneiam com tanto vigor. É um cenário possível, mas incerto. Vai depender do quanto outros países forem contagiados pelo exemplo norte-americano; e o quanto, de fato, os eleitores estão vacinados. Infelizmente, foi preciso outra pandemia para debelar a primeira. Foram mais de dez milhões de infectados, duzentos e quarenta mil mortos e uma recessão sem precedentes. Nessa queda de braço, o corona deu uma chave de pescoço no Trampo. E ele terá que procurar, a partir de janeiro próximo, outro trampo. Para manter-se fiel a si mesmo, não sairá sem tumultuar o processo.

Quem irá embaralhar as cartas a partir de agora? Resistirá B sem o seu grande pilar? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

Casa do Baralho, episódio de hoje: Qué he echo yo?

O general P, após quatro meses como interino da pasta mais importante do país em tempos de pandemia, foi nomeado ministro. Ao receber a notícia deve ter se sentido como o personagem do filme espanhol Qué he echo yo para merecer esto? ou em um idioma que o general entenda: o que fiz para merecer isto? Curiosamente, é a pergunta que o brasileiro vem se fazendo nos últimos anos e tornou a se perguntar, enfaticamente, ao ouvir quem seria o “novo” ministro da saúde.

Quando o general assumiu como interino, em meados de maio, o Brasil tinha 14.800 mortos por Covid-19. Nesses quatro meses saltou para mais de 134.000. Havia pouco mais de 228 mil infectados. Quatro meses depois, são quase quatro milhões e meio. O país assumiu a liderança mundial em vítimas por números de habitantes e por taxa de óbitos entre os contaminados. Bateu o recorde de longevidade da curva. Não é pouca coisa. Em outro país o gestor já teria sido afastado. No Japão, pediria perdão e cometeria Sepukku. No Brasil, foi oficializado no cargo.

O general formou-se nas Agulhas Negras como Oficial de Intendência, responsável, no exército, pelas atividades de suprimentos, transporte, lavanderia e sepultamento. O presidente trocou um médico por um coveiro para cuidar da saúde dos brasileiros. B, é sabido, tem três grandes fetiches: poder, golden shower e a morte (dos outros). No quesito poder, nenhum ministro se mostrou tão subserviente ao senhor presidente. No quesito morte, os números falam por si. Sobre o golden shower…é  assunto privado entre o mandatário e o pau mandado. O fato é que o militar performou conforme os ditames da política do atual governo. Ceifou mais vidas que as armas, a polícia, as queimadas, os agrotóxicos e a crise econômica juntos.  Só não obteve maior êxito por culpa do STF, prefeitos e governadores.  Mesmo assim, chegou onde nenhum outro conseguiu chegar.

Nos últimos dias, porém, os números pararam de crescer, mantendo-se no patamar de mil mortes por dia. O presidente entendeu que seu general precisava de um incentivo e resolveu oficializá-lo como chefe da pasta, antes que a curva despencasse. Na posse, o ministro declarou que ficar em casa comprovadamente não conteve a pandemia. E que o novo normal era conviver ou conmorrer com o vírus.

Logrará B estancar a sangria no número de mortos? Voltarão o norte e nordeste ao hemisfério sul? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho!!!

Casa do Baralho, episódio de hoje: Emas e Avestruzes

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O presidente capitão paraquedista, obstinado em testar limites, enfrentou, neste inverno, uma impressionante maratona de obstáculos. Em junho, seu velho ex-amigo Feiroz foi preso e o presidente sentiu um frio nas hemorroidas. O abalo foi tão grande que sua imunidade despencou ao nível da aprovação de seu governo. Deixou de bater papo no cercadinho do palácio e foi trabalhar arregimentando o Centrão, a turma sexo explícito do toma-lá-dá-cá no congresso. Contratou, a preço de ouro, um seguro contra impeachment. Com a imunidade baixa, contraiu Covid-19, também conhecida nos círculos presidenciais, como gripezinha. Febril, acompanhou inerte as ações do STF contra as fake news e o fechamento das contas de seus colaboradores nas redes sociais. Como se não bastasse, fundos internacionais de investimento ameaçaram cancelar o Brasil, em função das queimadas na Amazônia. Não adiantou o vice explicar que os números estão errados, que a culpa é dos radares que não enxergam bem. A quebra de sigilo bancário do Feiroz jogou mais queirosene na fogueira, identificando novos depósitos feitos na conta da primeira-dama. E para coroar, o Brasil ultrapassou a terrível marca de cem mil mortos pela doença, que o presidente chamou de gripezinha.

Nos dias de aperto e ócio do isolamento imposto pela gripezinha, o presidente buscou  se amigar com as emas que habitam os jardins do Alvorada. Ensaiou o toma-lá-dá-cá oferecendo uma banana. Tomou uma bicada.

— Caralho! Fui alimentar as avestruz e elas me morderam a mão — Comentou, chateado, com um assessor.

— Não é avestruz, presidente, é ema. E elas não mordem, bicam. Mas normalmente são seres muito dóceis, não atacam seres humanos.

— Me disseram que elas comem de tudo. Até pedra.

— Isso é avestruz, presidente. Mas as emas adoram bananas. Acho que o problema não foi o alimento…

Ema é a mãe, pensou o mandatário. Vou mostrar pra esses bichos quem come na mão de quem. Depois de erguer uma caixa de cloroquina para seus admiradores, como Moisés ergueu as Tábuas da Lei para os hebreus, e ser fortemente ovacionado, teve a ideia de como se vingar. Muito matreiro, ofereceu a droga às aves. Elas o mandaram plantar bananas.

— Essas avestruz vão se haver comigo. Vão virar churrasco.

— Não são avestruzes, são emas — esclareceu novamente o assessor.

— E qual é a porra da diferença?

— Avestruz é aquele bicho que na hora do perigo enfia a cabeça no buraco, achando que se ela não vê o perigo, ele não existe. A Ema, como o senhor já sabe, contra-ataca quando sente cheiro de um predador.

— Ai, ai, a coisa tá feia. Não vejo a hora do pico passar.

— Da pandemia?

— Não. Desse inverno astral que tá me perseguindo.

E o pico passou. Feiroz progrediu para prisão domiciliar. O filho investigado  ganhou foro privilegiado e a mais incrível das boas notícias: a avaliação de seu governo na pesquisa melhorou, pela primeira vez desde o início do governo. Como logrou essa façanha com a pandemia batendo recordes, ceifando vidas e arruinando a economia? Ele não tem dúvidas, foi o  auxilio emergencial de 600 reais que “distribuiu” ao povo. Se realmente for isso,  surge uma conta fácil de fazer (e difícil de aceitar): no Brasil, cem mil vidas valem menos do que seiscentos reais.

Até quando o país seguirá incorporando o espírito da avestruz? Não perca nos próximos episódios da Casa do Baralho!

Comunhão – A Arte em Tempos de Cólera

Comunhão 2

A pandemia nos fechou em casa. Lacrou fronteiras, bares e restaurantes, templos de culto e oração, inclusive os shopping centers. Paralisou inúmeras atividades artísticas como apresentações de teatro, dança e música, exposições e a produção audiovisual. Por outro lado, as pessoas confinadas passaram a consumir audiovisual como nunca pelas telas de TV, computadores e smartphones. É provável que a internet e os canais de conteúdo venham a ser identificados como os grandes guardiões do equilíbrio mental em análises futuras sobre esse período.

Para muitos de nós, realizadores e artistas, a situação dramática da doença e seus desdobramentos tornou-se um tema a abordar, uma provocação para criar, uma angustia a expressar.

Mas como fazer um filme sem sair de casa, sem reunir uma equipe, elenco, etc. etc.? A Netflix, plataforma de streaming, cujo número de assinaturas foi às alturas durante a pandemia, criou o projeto Feito em Casa, no qual comissionou vários cineastas pelo mundo a fazerem curtas dentro das normas vigentes do distanciamento social. Há algumas obras inspiradas e inspiradoras (a das americanas Rachel Morrison e Ana Lily Amirpour, a do italiano Paolo Sorrentino, a da britânica de origem indiana Gurinder Chadha e, principalmente, a do chileno Pablo Larrain), mas no geral se constata como é difícil ser criativo nessas condições minimalistas.

Assolado pelo isolamento, pela sensação de impotência frente à situação política e pela vontade imensa de criar, busquei refúgio nos registros em vídeo gravados em meu celular no ano passado. Olhava-os como um álbum de recordações de um tempo distante: imagens feitas na viagem de pesquisa para um documentário a ser rodado no Brasil e em Israel (projeto que entrou em stand by na pandemia), alguns shows, a manifestação em defesa da Cinemateca Capitólio em Porto Alegre, a praia, a feira, músicos tocando em um bar. Imagens corriqueiras, ou que foram corriqueiras naqueles tempos distantes. Ao assisti-las, ao folhear o álbum, percebi que cada ato no meio do povo, de uma galera, seja ele um evento ou um ato banal, tenha ele caráter mais coletivo ou mais individual, é um tipo de comunhão. Essa descoberta não teria acontecido não fosse a privação pelo confinamento, obra da pandemia. O isolamento ressignificou essas imagens, ou adicionou a elas um sentido que estava oculto quando foram gravadas. Comunhão é a expressão dessa descoberta, é a tentativa de coreografar, em som, cores e movimento esse ritual, e os meus sentimentos.

Comunhão foi editado por Bruno Carvalho, parceiro de longa data, com música da violoncelista e compositora israelense Rali Margalit. Todo ele é feito de imagens gravadas no meu celular, em 2019 e início de 2020, e uma imagem da minha janela, já durante a pandemia. Aparecem no vídeo o grupo Chorole, com Salit Lahav e Daniel Ring, o grupo Fuerza Bruta, os músicos de Roda de Samba no casamento na praia, e o pessoal do Carnapitólio com Judite Inês. O apoio em Israel de minha irmã Rachel Eren foi fundamental.

Espero que assistir e compartilhar o vídeo também torne-se uma espécie de comunhão, ainda que virtual.

Casa do Baralho, episódio de hoje: A Arte da Guerra

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Aviso: esta série é uma obra coletiva, escrita por vários roteiristas. Alguns se conhecem, outros não. O fato é que um não sabe o que o outro está fazendo.

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

O presidente capitão de reserva B não entende por que todo mundo cai de pau em cima dele. Quando fez pouco da pandemia, foi criticado. Agora que está tratando do assunto como uma guerra, segue sendo objurgado. O problema é que boa parte dos cidadãos, infelizmente, tem uma mentalidade civil, ou seja, não entende nada de guerra. Os políticos, os juízes e a imprensa lixo não fogem dessa regra. Porra, como tudo é mais fácil em um ambiente militar.

Os civis exigem “transparência”. Eles estão brincando? Não sabem que esconder o jogo, criar uma cortina de fumaça é estratégico? Foi assim com a cloroquina. “Não há comprovação científica de que é eficaz!!!”, bradavam. Que que interessa isso daí se tá ou não comprovado, se é ou não é verdade? Se o inimigo achar que tu tem uma arma poderosa contra ele, ele vai recuar. É isso que importa. Então toca a produzir cloroquina e divulgar que nem louco que ela mata o vírus. E aí, o que eles fazem? Alertam os gansos. Pior ainda, vociferam que o medicamento pode matar o paciente, por efeitos colaterais. Aí sim o vírus se encheu de coragem e intensificou as suas ações. Esse vírus é porreta. Não negocia, não recua, não abre as pernas pra ninguém. Queria ser como ele, porra. Virulento.

O pessoal quer a “verdade”. A verdade é que estamos em guerra. Guerra!!! E o Brasil, em vez de dar graças a Deus por ter um líder que entende do assunto, com um histórico militar invejável (até ser “aposentado”), fica atrapalhando. Porra, o presidente capitão de reserva foi obrigado a dar um golpe de estado dentro do próprio Ministério da Saúde. Teve que se livrar dos doutores e colocar no lugar generais experimentados em combate. Estrategistas de primeira ordem. Logo perceberam que todas as encomendas de testes, respiradores e máscaras só escancaravam para o inimigo a fragilidade da situação. Cancelaram imediatamente todos os pedidos. As pessoas não entendem que uma guerra não é sobre salvar vidas, é sobre destruir o inimigo. E quando não dá pra destruir diretamente o inimigo, tem que usar de astúcia, contornar a situação. Então os generais resolveram, ao invés de atacar frontalmente o vírus, atacar os números. Divulgaram bem pequenininho os dados de infectados e mortos e colocaram em destaque o número de curados. Isso iria abalar o moral do corona. Não abalou. Aí decidiram radicalizar na manobra, eliminar os dados. O apagão de informações deixaria o inimigo no escuro. O vírus, atônito, perderia logo o rumo, seria um xeque-mate. Mas aí os civis e as suas instituições resolveram novamente atrapalhar. Não só gritaram e espernearam (isso não tem problema, é até divertido), mas resolveram criar, eles mesmos, seus bancos de dados para divulgar os números, sabotando a estratégia governamental. Aí teve que recuar e voltar a divulgar, para poder ainda ter algum poder sobre os números. Só que agora o vírus tá esperto. Não confia mais nos dados oficiais manipulados pelos soldados e oficiais.

Porra, por que não o deixam trabalhar? Não se dão conta que ganhou a guerra das eleições, sem partido, sem exército, quase sem dinheiro, usando unicamente as poderosas armas de camuflagem e dissimulação? Os outros candidatos também mentiam, mas ninguém vendia lorota com tanta sinceridade. Nenhum deles inovou, nem ousou como ele: foi além das fake news, criou a fakada. É assim que se encara uma guerra. Então, se ele conseguiu convencer (ou confundir) 58 milhões de brasileiros, não vai conseguir vencer um vírus?

Não perca nos próximos episódios da Casa do Baralho.