Nas Muralhas da Fortaleza

Filme de Hwang Dong-Hyuk, Coreia do Sul, 2017

O ano é 1636, o local, o reino de Joseon, na península que hoje chamamos de Península da Coreia. O Rei Injo está espremido entre duas dinastias que disputam o domínio da China: a Quing e a Ming. O exército Quing invade a península e o Rei consegue fugir para uma fortaleza nas montanhas, ao sul da capital. Sitiado com sua corte, poucos soldados e os aldeões da fortaleza, Injo deve decidir se capitula para as exigências dos Quing ou os enfrenta. Em suma, tem que optar pela sobrevivência com humilhação ou uma provável morte com dignidade. Curiosamente, este conflito (filosófico, mas também muito pragmático) é o cerne dramático do filme, e não a própria guerra que espreita logo abaixo das muralhas. Dois ministros conduzem esse debate, lutando pela atenção do Rei e dos vários outros conselheiros que o cercam, representando duas facções políticas. Junta-se aos conflitos político e militar o conflito social, o abismo entre nobres e o povo que padece de fome e frio durante o sítio. Este terceiro conflito insere um olhar contemporâneo no filme histórico que se passa em uma Ásia feudal.

A densidade dramática, assim como as muralhas da fortaleza, é solidamente construída. Percebe-se a mão segura e a sensibilidade apurada do diretor. Os figurinos e cenários, as cores do inverno na montanha gelada, as composições rigorosas dos planos, o uso de lentes longas que borram a profundidade, além do trabalho preciso dos atores, fazem parte dos instrumentos nessa orquestração que trata questões universais, atuais abordando uma realidade distante num episódio histórico quase esquecido.

O diretor Hwang Dong-Hyuk alcançou fama mundial com sua série Round 6. Assim como a série, o filme Nas Muralhas da Fortaleza, adaptado do romance histórico Namhansanseong (2007) de Kim Hoon, pode ser visto na Netflix.

The Falls

Filme de Chung Mong-hong, Taiwan 2021

O substantivo the falls tem duplo sentido. Significa as cachoeiras/cataratas, ou as quedas. Ambos significados têm tudo a ver com o filme. The Falls retrata uma jornada de uma adolescente e sua mãe. Uma jornada de inúmeros tropeços que resultam numa enorme queda. E num esforço maior ainda para tentar se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Um dos maiores atributos do filme é o uso das viradas. Não se trata  das viradas clássicas de roteiro na trama ou de transformação do personagem, mas viradas no olhar do espectador, que julga estar acompanhando um determinado enredo e descobre, de repente, que as aparências enganam. Uma dessas “aparências enganosas” é a importância da Covid-19 para o contexto da filme. A Covid se encontra no pano de fundo, tem sua função na obra, mas a doença da qual o filme trata se revelará outra, bem diferente.

Mais uma característica marcante da obra é a delicadeza com que The Falls trata seus personagens, sem poupar-lhes das crueldades e dos tapas da vida, mas com uma sensibilidade ímpar na compreensão de seus conflitos. Essa delicadeza se expressa principalmente no trabalho de atores, em especial o das duas protagonistas Alyssa Chia e Gingle Wang. Em tom contido elas navegam por grandes dramas, torrentes turbulentas por baixo da superfície.

Chung Mong-hong, também conhecido como Nagao Nakashima, é um realizador que vem se destacando por seu estilo singular. Nessa grande sinfonia do fazer cinematográfico ele, além de reger a orquestra, toca os instrumentos de roteiro e direção de fotografia. É um cineasta de olho apurado, texto afinado e grande sinergia com seus atores. Dele é também o intrigante A Sun (2019), disponível na Netflix, assim como The Falls, ambos representando o cinema feito em Taiwan.

Trailer com legendas em inglês

37 Segundos

Filme de Hikari – Japão – 2019.

Trinta e sete segundos foi o tempo que Yuma ficou sem respirar quando nasceu. Esses segundos foram determinantes para sua vida. Ela não se vitimiza, mas às vezes pensa como seria se houvesse ficado apenas trinta e seis segundos sem respirar. 37 Segundos, longa-metragem de estreia da cineasta japonesa Hikari, surpreende pela ousada abordagem de tema  delicado: nosso olhar sobre portadores de deficiência física e o olhar deles sobre esse nosso olhar. 

Inicialmente, a ideia era ter uma protagonista que sofreu lesão na coluna após um acidente de carro. Para Hikari, diretora e roteirista, era fundamental que a atriz fosse cadeirante, tanto pela prática da inclusão, como pela naturalidade da interpretação. Após inúmeros testes ela conheceu Mei Kayama, atriz amadora que a cativou de imediato. Hikari reescreveu o roteiro, mudando as características da personagem e alguns elementos da trama inspirados na vida de Mei. A lesão na coluna deu lugar à paralisia cerebral e o filme ganhou seu título instigante. Não seria exagero dizer que em 37 Segundos, Kayama é muito mais do que a atriz principal. Embora não assine o roteiro nem a direção, muito da sua história enriqueceu o filme; muito da sua condição inspirou a maneira de filmar. A fisionomia híbrida de menina e mulher, sua voz, seu jeito e seus trejeitos trazem uma autenticidade singular ao personagem e à obra. A entrega, a coragem de expor-se em seu primeiro trabalho frente às câmeras impressiona. Para atingir esse patamar, Kayama contou com a direção segura de Hikari e com o apoio fundamental de seus colegas de elenco, principalmente o de Kanno Misuzu, que faz o papel de sua mãe.

Yuma (Mei Kayama), o mangá e seu olhar sobre nosso olhar sobre ela.

E é justamente da relação com a mãe que se origina o conflito principal. É a partir dele que personagem e filme se colocam em movimento. A superproteção materna sufoca Yuma, que é plenamente consciente de sua capacidade. Isso a faz romper a redoma e se expor a outras situações e olhares referentes à sua condição, o que a obra explora numa combinação mágica de crueza e sensibilidade. A gramática do filme, aliada à figura frágil de Yuma, cria uma tensão subjacente e nos confronta com nossos preconceitos, não só em relação aos “incapacitados” como em relação a outro universo marginal, o dos profissionais do sexo. A referida mudança no roteiro (que foi reescrito em apenas um mês, durante a pré-produção e preparação do elenco) sobrecarrega o ato final com excesso de subtramas e um tom levemente melodramático, destoante do clima do filme. Isso, no entanto, não chega a amenizar o forte impacto que a obra deixa ao final, junto com uma sublime sensação de bem-estar. É o que os americanos chamam de feelgood movie.

37 Segundos estreou na seção Panorama do Festival de Berlim em 2019, faturando o prêmio do Júri Popular e o prêmio da Confederação Internacional dos Cinemas de Arte. O filme pode ser visto na Netflix.