A Memória Infinita

Filme de Maite Alberdi, Chile, 2023

Eu pouco sabia sobre A Memória Infinita quando resolvi assistir ao filme. Sabia apenas que era um documentário chileno com uma abordagem diferenciada. Esse pouco conhecimento foi fundamental para que o filme me pagasse de surpresa, revelando-se camada por camada com seus encantos. Por isso sugiro que você interrompa aqui a leitura, veja o filme e depois volte ao post. Você pode vê-lo na Paramount Plus, via Amazon Prime ou Apple TV.

Maite Alberdi, que emplacou dois documentários chilenos à nomeação ao Oscar, achou que iria fazer um filme sobre o Alzheimer quando conheceu o casal Augusto Gongóra e Paulina Urrutia. Augusto já tinha a doença e Paulina o levava ao trabalho dela, os ensaios da peça de teatro em que era atriz. Maite achou isso interessante e os abordou com a proposta de acompanhar a rotina do casal no enfrentamento à doença. Paulina foi reticente, por todos os motivos compreensíveis. Quem a convenceu foi justamente Augusto, que não se importou em expor sua intimidade e fragilidade, talvez percebendo a relevância que a obra iria atingir.

A diretora não imaginava que o caso individual de Augusto iria levar seu filme por uma reflexão sobre a memória de uma nação inteira, e como o apagar dessa memória aniquila a identidade, seja de uma pessoa ou de um povo, deixando marcas profundas. Ela acabou descobrindo este caminho no decorrer das filmagens, ao conhecer melhor a história de Augusto, seu trabalho de repórter durante a ditadura de Pinochet.

Tampouco ela podia imaginar que uma pandemia se aproximava, o que iria impossibilitar o contato da equipe de filmagem com Augusto e Paulina. Como naquela altura já havia sido criada uma relação de confiança entre ela e o casal, a solução foi deixar um equipamento com Paulina, que documentou a rotina do casal isolado enquanto a doença progredia, resultando num material de proximidade e intimidade assombrosas. Paulina então, além de cuidadora e companheira tornou-se co-realizadora do filme, ao menos durante esse longo período de isolamento.

Com a pandemia, o isolamento imposto ao casal causou o agravamento da doença, com a sensação de abandono de Augusto por não poder ver mais seus amigos e filhos. Um sofrimento que Paulina teve que aguentar no peito, o que nem sempre ela conseguia. Todos esses elementos e o fato de os dois serem pessoas muito especiais resultam na exposição de uma história de amor que parece coisa de cinema, mas é a vida real, que conjuga momentos de desesperada agonia e profunda alegria.

Várias vezes no decorrer do filme me lembrei do francês Meu Pai. São obras muito diferentes que abordam o Alzheimer de forma sensível e poética, como eu antes nunca tinha visto. Uma delas é ficção, com roteiro e atores de primeira, o outro é um documentário com personagens sensacionais, que levou sua diretora por caminhos inesperados, como muitas vezes acontece em um documentário. O importante nesses casos é saber se deixar levar pelo material, abandonando, às vezes, ideias pré-concebidas.

Cabe destacar o trabalho da montadora, Carolina Siraqyan, que criou essa estrutura intricada de revelação por camadas, articulando de forma magistral a narrativa entre filmes de arquivo e o material original, a história pregressa e o momento atual. Essa edição primorosa, ao lado dos incríveis personagens é o que torna o filme genial.

Augusto faleceu em 2023, aos 70 anos, quatro meses após a estreia de A Memória Infinita.

O filme foi premiado com o Goya de melhor filme Ibero Americano, O Prêmio de Júri do festival de Sundance, Prêmio Platino de Melhor Documentário Latino Americano e ficou entre os cinco finalistas do Oscar para Melhor Documentário.

Pequim em Coma

Livro de Ma Jian, China/Inglaterra –  2008

Pequim em Coma é uma obra de alto impacto. Impacto político, pelo mergulho na história da opressão chinesa, da luta intensa entre reformistas e líderes linha dura,  idealistas e  arrivistas no governo e no próprio movimento estudantil. Impacto humanista por expor as crueldades, as mesquinharias e virtudes de cidadãos comuns em meio a essa opressão. Impacto literário por um conjunto de ousadias de linguagem e estrutura genialmente articuladas numa narrativa hipnotizante.

Dai Wei é o narrador/personagem, mas sua narração em primeira pessoa se alterna para uma narração em terceira pessoa quando conta fatos de sua pré história, e volta e meia surge uma narração em segunda pessoa, quando o Dai Wei consciência fala com o Dai Wei corpo. “Você se lembra de estar parado no meio da praça, o vento quente soprando em seu rosto. A Praça era como o quarto em que está deitado agora: um espaço quente com um coração vivo, aprisionado no centro de uma cidade gelada.” A narração em segunda pessoa (raramente utilizada na literatura) e a alteração entre as formas de narração criam um clima dramático que aumenta ainda mais a tensão dos fatos narrados. A condição do protagonista, preso em uma cama, ou melhor, em seu corpo em coma, porém ciente de tudo que se passa em sua volta e tentado lembrar do que o trouxe até essa condição, justifica a pluralidade de pontos de vista narrativos, exposta por  um único narrador.

O coma é real e também metafórico, como o próprio título indica, e o narrador comatoso simboliza o cidadão oprimido sob a ditadura: pode lembrar, mas não pode agir.

Pequim 1989 – Imagem icônica do protesto na Praça da Paz Celestial

Pequim em Coma é épico e intimista ao mesmo tempo, alterna poesia e ira explosiva, luta e romance ao narrar em detalhes os eventos de 1989 que culminaram no protesto do movimento estudantil na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), no coração de Pequim. O autor testemunhou parte desses eventos e seu olhar nos coloca no centro neural do movimento. A complexa teia de conflitos e personagens, a sofisticada construção literária não afastam o leitor, ao contrário, criam fluência e uma tensão dramática de tirar o fôlego.

Ma Jian teve seu livro sobre o Tibet (1987) banido pelas autoridades por “contaminação espiritual” e mudou-se para Honk Kong para respirar ares menos oprimentes. Após a devolução da ilha à China ele rumou para a Europa. Vive desde 1999 em Londres. Todos os seus livros estão proibidos atualmente na China.

O Homem do Castelo Alto

Série, criação de Frank Spotniz, EUA 2015 – 2019

No universo das séries da Amazon O Homem do Castelo Alto se destaca, imponente, fazendo jus ao nome. A série, de 40 episódios distribuídos em 4 temporadas, baseia-se no romance homônimo de Philip K. Dick, autor de várias obras adaptadas para as telas, a mais conhecida: Androides Sonham Com Ovelhas  Elétricas?;  no cinema, Blade Runner, de Ridley Scott. Scott também assina a produção executiva de O Homem do Castelo Alto.

O ano é 1962 (ano de publicação do romance) e os países do eixo venceram a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos foi dividido entre alemães e japoneses, com uma estreita zona neutra no centro. Washington foi destruída por uma bomba atômica. Nova York é a capital do Grande Reich e São Francisco é a sede das forças de ocupação japonesa. A relação entre as ex-aliadas começa a ser corroída por sinais de uma iminente guerra fria (qualquer semelhança entre a Alemanha dividida entre União Soviética e Estados Unidos no pós-guerra do mundo real, não é coincidência). Mas a deterioração nas relações entre o Império Japonês e o Terceiro Reich governado por um Hitler envelhecido, não é o centro da série. Seu eixo principal são os rolos de filmes contrabandeados para o tal Homem do Castelo Alto. Qual o conteúdo desses filmes, onde são produzidos, porque constituem uma ameaça tão grande a ponto de as policias secretas terem como prioridade a captura do Homem do Castelo Alto e seus filmes e ninguém,  além do próprio Fuhrer, ser autorizado a vê-los? Esse mistério mantém o espectador cativo na primeira temporada, enquanto são introduzidos os personagens principais e as “leis” que governam essa distopia de realidade alternativa.

Juliana Crain (Alexa Davalos) e os filmes que deixam em polvorosa o Reich.

Na medida em que a trama avança, a série torna-se mais complexa, questionando, de forma extremamente criativa se somos o que somos talhados pelas circunstâncias do tempo e local em que vivemos, ou se manteríamos a mesma personalidade em outras realidades. Além da sofisticação dos temas, a série tem a marca de seu produtor no rigor  dos enquadramentos, da direção da arte e principalmente da luz. A estética nazista, a cultura nipônica e os anos 1960 nos EUA abrem as portas para uma mistura ousada e um visual eloquente, quase exuberante.

A jovem Juliana Crain (Alexa Davalos) é a protagonista da série, no entanto os personagens mais instigantes são o oficial nazista Joe Smith (nome equivalente a João  Silva no Brasil, ou seja, um americano comum que ascendeu na hierarquia do novo regime) e o ministro japonês Nobuske Tagomi, magistralmente interpretados por Rufus Sewell e Cary-Hiroyuki Tagawa.

No romance, são livros que deixam o Reich em polvorosa, na série são filmes. Em ambos os casos trata-se de veículos de conhecimento, cultura e imaginação, o pesadelo de ditaduras e ditadores. Essa mescla de política, mistério, história, filosofia e fantasia cria uma obra impactante, que em alguns momentos perde força quando os dramas dos personagens escorregam para um terreno telenovelesco. Das quatro temporadas, a primeira é a mais eletrizante. Mas se você começar a assistir, vai ser difícil de largar.

Presidente

Filme de Camilla Nielsson – Dinamarca/EUA/Noruega – 2021.

Em 2013, o Zimbábue promulgava uma nova constituição. Governado pela mão de ferro de Mugabe, desde sua independência em 1980, o país via na carta magna um passo enorme rumo à democracia e a tão almejada alternância no poder. A nova constituição limitava o mandato presidencial a um período de cinco anos com possibilidade de uma única reeleição. A regra, porém, passaria a valer a partir da eleição seguinte e Mugabe, portanto, continuava no poder. A cineasta dinamarquesa Camilla Nielsson foi ao país africano cobrir o processo constituinte, cobertura que resultou no documentário Democrats, seu primeiro longa. O filme fez boa carreira em festivais, mas foi proibido de exibição no Zimbábue.

Em 2017, o presidente foi preso pelo exército num golpe orquestrado pelo seu vice Emmerson Mnangagwa. Mugabe então negociou a liberdade em troca da renúncia e o vice assumiu, prometendo convocar eleições democráticas e transparentes para o ano seguinte.

Camilla voltou ao país em 2018 para pleitear na justiça a liberação de seu filme. Conseguiu bem mais do que isso. Em meio ao turbilhão pré-eleitoral, dez anos após o último pleito cercado de violência e fraude, um dos participantes de Democrats sugeriu que filmasse a disputa entre o presidente Mnangagwa, da União Nacional Africana do Zimbábue (partido de Mugabe), e o jovem Nelson Chamisa, do Movimento pela Mudança Democrática (MDC). A grande questão que pairava no ar não era quem seria o vencedor, mas se o pleito seria conduzido de maneira limpa, como prometera Mnangagwa. Presidente é a resposta a essa pergunta.

O documentário é articulado como um thriller. Apesar de ser um puro sangue da escola do documentário direto (apresentação dos eventos filmados com a mínima intervenção da câmera e do diretor), a carga dramática parece a de um filme de ficção. A equipe em campo era mínima (Henrik Bohn Ipsen como diretor de fotografia e operador de câmera e a diretora, que também operava o som), num formato que remete ao jornalismo. No entanto, o olhar e a construção narrativa do filme vão muito além da reportagem. A edição é fundamental nessa construção e na dinâmica avassaladora. Nos 130 minutos que passam voando, Presidente apresenta um mosaico de personagens instigantes, um vislumbre de uma nação multicultural com 16 idiomas oficiais, conflitos políticos, éticos e morais e a descoberta de um crime. Ingredientes captados em três meses intensos de filmagem, acompanhando a disputa eleitoral, o resultado da votação e seus desdobramentos.

Presidente levanta questões complexas, algumas apresentadas explicitamente, outras provocadas nas entrelinhas. Em mim despertou a reflexão sobre o quanto o modelo de democracia representativa forjado no ocidente se encaixa em outras culturas e sociedades, e o quanto esse modelo faz parte do pacote da herança do colonialismo europeu e por ele é aviltado. Camilla comentou em entrevista que, apesar do sucesso do filme, sente-o como uma crônica do fracasso. Fracasso que atribui fortemente à atuação da comunidade internacional e seus observadores, que acabaram legitimando o processo. Comunidade na qual ela, como cineasta europeia filmando na África, se reconhece como parte. 

Presidente ganhou a competição internacional do festival É Tudo Verdade e o Prêmio Especial do Júri por Cinema Vérité no festival de Sundance, em 2021. Distribuido pela Cinephil, em breve deve marcar presença nas telas.

A Filha de Agamenon / O Sucessor

Ismael Kadaré author 2005

Livro de Ismail Kadaré – Albânia – 2003.

A Albânia é um pequeno país encravado nos Bálcãs e uma das nações mais pobres da Europa. Na Segunda Guerra Mundial foi anexada pela Itália e viveu sob o regime fascista de Mussolini até ser ocupada pelo exército de Hitler. Com a derrota dos países do Eixo, a Albânia ganhou novamente a sua independência e tornou-se comunista. Em 1948, brigou com sua vizinha Iugoslávia e se aliou à União Soviética. Após a morte de Stálin rompeu com Moscou e se aproximou de Pequim. Em 1968 retirou-se do pacto de Varsóvia e dez anos depois se afastou da China, tornando-se um dos países mais herméticos do planeta. Um dos poucos albaneses a atravessar as fronteiras, e lançar luz sobre o obscuro país através de sua literatura iluminada, é Ismail Kadaré.

O Livro A Filha de Agamenon e O Sucessor reúne dois textos – um conto e uma novela – escritos com uma diferença de quase vinte anos. O conto, escrito em 1985, esperou a queda do regime, para ser publicado, juntamente com a novela finalizada em 2003. As duas histórias são inspiradas no caso de Mehmet Shehu, que chegou a ser o número dois na hierarquia política, apontado como o futuro condutor da nação e pouco depois amanheceu em sua cama, com uma bala na cabeça. A Filha de Agamenon aborda o momento em que o político chega ao ápice no poder e em consequência exige que sua filha termine a relação que mantém com um jornalista da TV estatal. O conto é narrado pelo namorado descartado, que reflete sobre o estranho “sacrifício” exigido da jovem, enquanto assiste ao grande desfile do Primeiro de Maio. A reflexão viaja no tempo e no espaço até Tróia e se estende, naturalmente, para os meandros kafkianos da ditadura albanesa.

O Sucessor, ao abordar a morte inexplicada do futuro condutor, mescla mistério e ironia em combinação explosiva que resulta num profundo tratado sobre a natureza da tirania e dos tiranos. Há uma estrutura meio Rashomônica na construção da novela, cada capítulo foca em um  personagem distinto ligado ao morto ou à sua morte. No último, o próprio defunto fala ao leitor por meio de médiuns, outra bela referência a Rashomon. É curioso que um dos personagens mais importantes não tem o seu próprio capítulo, sua centralidade emerge discretamente por entre as linhas e surpreende, como nos melhores romances detetivescos.

A grande proeza de Kadaré é colocar-se no lugar de cada um dos personagens e, principalmente, penetrar na psique dos grandes tiranos, em especial os que iniciaram sua trajetória  lutando para livrar o povo da opressão. O talento do autor cria uma espécie de tomografia da alma desses líderes, seres ao mesmo tempo humanos e inumanos.  O mergulho ousado, o  desenho preciso e multifacetado  é o que tornam o texto tão impactante. Há uma passagem em que o filho do Sucessor partilha com sua irmã um pensamento sobre a natureza do pai e de seus colegas que lutaram contra o nazifascismo e após a Guerra conquistaram o poder. Em sua relação com o Partido formam uma espécie de família, pois também são ligados por laços de sangue. Não o sangue que corre nas veias, mas o sangue derramado de suas vítimas.