Intimidade

Série, criação de Verónica Fernández e Laura Sarmiento, Espanha 2022

Intimidade é uma das mais instigantes obras para TV  que  tratam do avanço das mulheres em  territórios que outrora eram predominantemente masculinos e da reação dos que não conseguem encarar este avanço. O choque entre progresso e reação é o motor dramático da série. O combustível é a violação da intimidade.

Seis mulheres, de diferentes idades, profissões e contextos sociais são envolvidas nos dramas causados pela publicação de dois vídeos que mostram duas delas durante o ato sexual. Malen é vice-prefeita de Bilbao e o vídeo, gravado na surdina, é publicado para acabar com a carreira da jovem política em ascensão. Ane é operária em uma fábrica, e as fotos e o vídeo, enviados e compartilhados em seu local de trabalho, têm o objetivo de humilhá-la por mera vingança. As outras quatro mulheres: a investigadora de crimes digitais que busca desvendar os dois casos, a irmã de Ane, a filha adolescente de Malen e a conselheira política da vice prefeita, têm seus próprios conflitos que são exacerbados em função do vazamento. A cadeia de reações machistas, desencadeada pelo material “explosivo”, engloba homens e mulheres, jovens e adultos.

Ane, Verónica Etchegui, avançando em território masculino.

A trama se desenrola entre o espaço da política e poder, a fábrica de maquinas pesadas, a polícia, a escola e as famílias. É admirável como o roteiro de Intimidade consegue conectar os personagens e cenários de dois casos paralelos, criando a dimensão de fenômeno social, sem abandonar a dimensão pessoal, o impacto de cada um dos casos nos indivíduos envolvidos. É mais admirável ainda como roteiro e direção constroem as personagens dessas seis heroínas, não apenas em cima de sua força, mas também de suas fragilidades.

Outro ponto interessante é que é uma produção do País Basco, conhecido no século passado pela luta sangrenta dos separatistas do ETA (ver o post Pátria). Com o fim do conflito a região resolveu investir no progresso e na cultura, criando, entre outras coisas, um polo de produção audiovisual. A série é falada em espanhol, mesclado eventualmente com o Euskera, o idioma local.

Intimidade, com Itziar Ituño e Verónica Etchegui, nos papéis de Malen e Ane, pode ser vista na Netflix.

Presidente

Filme de Camilla Nielsson – Dinamarca/EUA/Noruega – 2021.

Em 2013, o Zimbábue promulgava uma nova constituição. Governado pela mão de ferro de Mugabe, desde sua independência em 1980, o país via na carta magna um passo enorme rumo à democracia e a tão almejada alternância no poder. A nova constituição limitava o mandato presidencial a um período de cinco anos com possibilidade de uma única reeleição. A regra, porém, passaria a valer a partir da eleição seguinte e Mugabe, portanto, continuava no poder. A cineasta dinamarquesa Camilla Nielsson foi ao país africano cobrir o processo constituinte, cobertura que resultou no documentário Democrats, seu primeiro longa. O filme fez boa carreira em festivais, mas foi proibido de exibição no Zimbábue.

Em 2017, o presidente foi preso pelo exército num golpe orquestrado pelo seu vice Emmerson Mnangagwa. Mugabe então negociou a liberdade em troca da renúncia e o vice assumiu, prometendo convocar eleições democráticas e transparentes para o ano seguinte.

Camilla voltou ao país em 2018 para pleitear na justiça a liberação de seu filme. Conseguiu bem mais do que isso. Em meio ao turbilhão pré-eleitoral, dez anos após o último pleito cercado de violência e fraude, um dos participantes de Democrats sugeriu que filmasse a disputa entre o presidente Mnangagwa, da União Nacional Africana do Zimbábue (partido de Mugabe), e o jovem Nelson Chamisa, do Movimento pela Mudança Democrática (MDC). A grande questão que pairava no ar não era quem seria o vencedor, mas se o pleito seria conduzido de maneira limpa, como prometera Mnangagwa. Presidente é a resposta a essa pergunta.

O documentário é articulado como um thriller. Apesar de ser um puro sangue da escola do documentário direto (apresentação dos eventos filmados com a mínima intervenção da câmera e do diretor), a carga dramática parece a de um filme de ficção. A equipe em campo era mínima (Henrik Bohn Ipsen como diretor de fotografia e operador de câmera e a diretora, que também operava o som), num formato que remete ao jornalismo. No entanto, o olhar e a construção narrativa do filme vão muito além da reportagem. A edição é fundamental nessa construção e na dinâmica avassaladora. Nos 130 minutos que passam voando, Presidente apresenta um mosaico de personagens instigantes, um vislumbre de uma nação multicultural com 16 idiomas oficiais, conflitos políticos, éticos e morais e a descoberta de um crime. Ingredientes captados em três meses intensos de filmagem, acompanhando a disputa eleitoral, o resultado da votação e seus desdobramentos.

Presidente levanta questões complexas, algumas apresentadas explicitamente, outras provocadas nas entrelinhas. Em mim despertou a reflexão sobre o quanto o modelo de democracia representativa forjado no ocidente se encaixa em outras culturas e sociedades, e o quanto esse modelo faz parte do pacote da herança do colonialismo europeu e por ele é aviltado. Camilla comentou em entrevista que, apesar do sucesso do filme, sente-o como uma crônica do fracasso. Fracasso que atribui fortemente à atuação da comunidade internacional e seus observadores, que acabaram legitimando o processo. Comunidade na qual ela, como cineasta europeia filmando na África, se reconhece como parte. 

Presidente ganhou a competição internacional do festival É Tudo Verdade e o Prêmio Especial do Júri por Cinema Vérité no festival de Sundance, em 2021. Distribuido pela Cinephil, em breve deve marcar presença nas telas.

Kingdom

Série – criação de Kim Eun-hee – Coreia do Sul – 2019 – duas temporadas.

O que há em comum entre Shakespeare, zumbis e samurais? A série sul-coreana Kingdom. A roteirista Kim Eun-hee e o diretor Kim Seong-hun usam elementos desses três universos para erguerem os pilares da saga medieval. A mescla de linguagens e gêneros tão distantes é uma ousadia repleta de riscos; e é essa ousadia que torna a série especial.

A trama, recheada de conspiração e intrigas palacianas, lembra muito Júlio César, Hamlet, Rei Lear e Macbeth, tragédias que abordam a ambição desenfreada pelo poder. Macbeth ganha ainda uma homenagem visual: em uma das cenas de maior suspense, as árvores da floresta ao lado de Sangju parecem se mover, lembrando a profecia das bruxas na obra shakespeariana: Macbeth jamais será vencido enquanto a floresta de Birnam não marchar contra ele sobre a colina de Dusinam. Assim como na peça, o aparente movimento da floresta antecipa a revelação de um erro que se mostrará fatal.

Se O Bardo não se furtava de convocar fantasmas e bruxas para auxiliá-lo em seus dramas, Eun-hee recruta seus auxiliares no mundo dos mortos-vivos. Os zumbis, na série, encarnam a desgraça produzida pela sanha de poder. Consequência de um plano ardiloso para usurpar o trono do príncipe herdeiro, pessoas que parecem mortas ganham vida durante a noite e saem em busca de carne humana. Suas vítimas são “contaminadas” e também se tornam mortos-vivos. Kingdom supera, no entanto, os clichês dos filmes de zumbis. Não apresenta essas criaturas como um fenômeno sobrenatural, nem as utiliza apenas como elemento aterrorizante. Trata-as como vítimas e sua condição como praga, como símbolo de uma doença contagiosa que pode rapidamente aniquilar um povoado inteiro. Enquanto o príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) e seus generais tentam exterminar a ameaça zumbi pela força da espada, a médica Seo-bi (Bae Doona) busca entender a doença. Há uma relação de colaboração (evidente) e disputa (sutil) entre as artimanhas militares e a ciência, na luta contra a ameaça zumbi.

A ciência representada pela médica Seo-bi ( Bae Doona).

As diversas batalhas trazem para a série o universo samurai. Kingdom tem sua trama localizada na Coreia medieval, durante o período da dinastia Joeson, nos anos de instabilidade e fome que surgiram após as invasões japonesas, ao final do século XVI. Impecável na reconstituição de época, a obra desenha muito bem a distinção de classes do período. A fome da população plebeia é um tema forte ao longo da primeira temporada, bem como o canibalismo. Praticamente toda a ação de Kingdom é composta de lutas ao estilo oriental.  Há cenas épicas de batalhas grandiosas e coreografias muito bem orquestradas de duelos entre vilões e heróis. Alguns princípios sagrados de filmes de samurai são colocados à prova, como os códigos de lealdade e justiça.

Kingdom apresenta uma qualidade cinematográfica raramente vista em obras seriadas. A direção de arte e a fotografia criam um visual espetacular no trabalho de luz, texturas e cores. Os contrastes entre o universo ocre e cinzento dos zumbis e os tons exuberantes do mundo “normal”; o contraponto entre os cenários e roupas dos nobres e dos plebeus; e a contraposição dos palácios e templos em seu esplendor e depois em ruínas, ajudam a compor o clima de alta tensão que permeia a série. A arquitetura das locações escolhidas a dedo contribui enormemente para o impacto estético.

O príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) em meio a luz e arte impecáveis

Apesar de Kingdom ter sido concebida em 2011, na Coreia do Sul, ela me parecia, a cada episódio assistido, mais e mais uma alegoria tragi/absurda sobre o Brasil atual, sufocado pela pandemia e por um projeto de poder perverso e mórbido. Obviamente, não foi essa a intenção da autora (o que prova que a obra ganha vida própria ao encontrar os olhos do espectador), mas há uma declaração reveladora de Eun-hee: “Venho trabalhando na série desde 2011. Quis escrever uma história que reflete os medos e ansiedades dos tempos modernos, abordados, no entanto, pelo prisma da fascinação romântica do período Joseon.” Conseguiu fazê-lo melhor do que imaginava.

Kingdom tem uma terceira temporada prevista. As duas primeiras temporadas podem ser assistidas na Netflix.