Ruído

Filme de Natalia Berinstain, México 2022

Ruído não é um filme fácil de assistir. Ele está tão distante de uma obra de entretenimento quanto os desaparecimentos no México estão distantes de uma solução. É um filme seco, cruel, incômodo, como a experiência que sua protagonista atravessa na jornada caótica em busca da filha, sumida há nove meses.

Nove meses, o tempo de uma gestação. Não é um período aleatório que os roteiristas escolheram para o desaparecimento de Ber. Ele remete ao laço forte da maternidade, força que moveu muitos anos atrás as avós da Praça de Maio, na Argentina, e atualmente move as mulheres mexicanas em busca de seus desaparecidos. Julia tatua em seu braço a mesma tatuagem que sua filha tem, ou tinha. Mais um reforço simbólico da relação mãe e filha e uma maneira simbólica também de se colocar dragonas, ou se pintar para a guerra.

Ao partir para a guerra, ou seja, para a ação, Julia descobre os caminhos dos coletivos de mulheres. Essa é uma diferença muito grande entre Ruído e vários outros filmes sobre pais procurando seus filhos sequestrados, desapontados com a inércia das autoridades. A obra de Natalia constrói uma jornada individual que se insere no coletivo. Julia participa, entre outras atividades, de um mutirão das rastreadoras, mulheres que se especializaram em localizar covas coletivas clandestinas.

Toda essa organização nasce da omissão, negligência e corrupção do poder público, realidade que o filme retrata magistralmente, criando um quadro assustador da ligação dos órgãos governamentais, a polícia especialmente, com o crime que ela deve combater. Um terceiro fator nessa jornada é a imprensa, principalmente a imprensa investigativa. A jornalista Abril Escobedo (Teresa Ruiz) conduz Júlia pelos labirintos de sangue, dor e morte, fazendo o papel que a imprensa oficial se omite de fazer. Mais uma heroína feminina nessa narrativa trágica.

A diretora comenta em entrevista que nos casos de desaparecimento a vítima principal é, obviamente, a pessoa desaparecida. Mas a violência é praticada também contra pessoas no entorno dessa vítima. Muitas famílias acabam se desintegrando pelas dúvidas sobre o destino da pessoa desparecida, pela impotência, pela falta de um desfecho, da possibilidade inclusive de praticar o rito de enterrar um corpo. O caráter pandêmico dos desparecimentos que assolou o país nas últimas décadas é que a motivou a fazer o filme, focando nos familiares das vítimas, eles também vítimas.

A sequência impactante que abre o filme escancara esse caráter pandêmico e dá um vislumbre da jornada que transita entre o individual e o coletivo. Julia é representada pela atriz Julieta Egurrola, mãe da diretora. O pai e o irmão de Natalia também são atores e trabalham no filme como pai e irmão da vítima. Seus personagens, Arturo e Pedro, assim como a protagonista, tem os nomes próprios dos atores.

A mim, o filme lembra Antigona, a tragédia de Sófocles (442 AC), e outra obra difícil e muito impactante que trata dos assassinatos de mulheres em Sinaloa, o livro 2666 de Roberto Bolaño. Ruído e 2666 são obras de denuncia, mas sobretudo de espanto frente a uma violência inexplicável. Dois fenômenos distintos, mas profundamente ligados, sintomas de uma sociedade gravemente enferma. Em Ruído há ainda um leve sopro, uma pequena ponta de esperança na organização coletiva. Mas a dor, o medo e o terror são ainda maiores.

O filme pode ser visto na Netflix.

A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Casa Caiu?

Dois acontecimentos da última semana fizeram tremer os alicerces da Casa do Baralho. Duas ondas com potencial de se chocarem e formarem um tsunami.

A primeira: finalmente o Superior Tribunal Federal tomou uma decisão sobre o Marco Temporal. Imaginem que o primeiro voto foi proferido lá em 2021, e depois o julgamento foi suspenso. Parece que o STF teve que esperar o fim do governo B para concluir a questão.

O tal Marco Temporal nada mais é do que a tese estapafúrdia de que as terras indígenas que podem ser demarcadas como tal, de acordo com a Constituição de 1988, só valem para as terras que os índios ocupavam antes do dia 5 de outubro de 88, data da promulgação da Constituição. Os ruralistas alegam que esse marco temporal daria uma “segurança jurídica” para seus negócios, um belo nome para continuar a usurpação. Não que eles tenham qualquer coisa contra os indígenas. Só querem poder explorar as riquezas dos territórios sem atrapalhação.

A outra onda foi criada pelo ex-ajudante de ordens do ex-presidente B. Após ser preso por falsificar cartões de vacinação usando os computadores da presidência, e ainda pelo envolvimento na surrupiagem e venda das joias das Arábias dadas como presentes ao então presidente, ele decidiu fazer um acordo de delação premiada. Como a casa do baralho é um tanto porosa, mal deu seu depoimento, vazou que nessa delação ele informa que o presidente fez uma reunião com os chefes das Forças Armadas para discutir um plano de golpe, 48 horas após a eleição do presidente L. Na ocasião, o comandante da Marinha topou, os outros dois, não.

Por nove votos contra e dois a favor, a tese do marco temporal foi derrubada. Os dois votos a favor foram de ministros alçados ao STF pelo presidente B. Coincidência? O marco temporal foi afastado, mas não o temporal que ameaça vir do congresso, armado pela Bancada do Boi. Eles prometem tumultuar as votações nas duas casas, até conseguirem o seu salvo conduto, quer dizer, a “segurança jurídica”.

A onda da delação do ex-ajudante de ordens ameaça abalar, além de seu ex-patrão, o próprio governo L, ou melhor, a intricada relação que este está tentado construir com as forças armadas. No Brasil elas se auto constituíram em um quarto poder, não de direito, mas de fato. O fato é que se a Policia Federal seguir mexendo nesse vespeiro do envolvimento dos militares com o movimento golpista, a coisa vai feder, e os militares vão chiar.

O que uma onda tem a ver com a outra? Aonde elas poderiam se encontrar? O ponto de convergência é B, ou melhor, o que ele representa: a bancada da bala, a bancada do boi, a volta do Brasil, enfim, aos tempos em que menino vestia azul e menina rosa, em que índio servia pra ser usurpado e negro pra ser explorado. Tempo em que o pobre sabia o seu lugar.

Será que a casa finalmente caiu para o ex-presidente? Será que o tsunami realmente se formará? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Discriminação

Leis e salsichas, é melhor não saber como são feitas/ Otto Bismarck

A Casa do Baralho é um habitat eivado de preconceitos. Preconceitos, por sua vez, resultam em discriminação. Discriminação racial, social, religiosa, de gênero, etária entre várias outras. Com o avanço da sociedade casabaralhal, várias leis foram feitas para coibir e combater a discriminação. Ontem, incluído na pauta de votação de última hora e sem passar por comissão nenhuma, foi aprovado na câmara dos deputados o Projeto de Lei que combate a mais nefasta das discriminações: a discriminação contra políticos e seus familiares.

Até a Lei abrir os olhos da sociedade, o brasileiro via os políticos e seus parentes como discriminados positivamente, ou seja, tinham direitos que o resto da população nem sonhava que existiam, como acesso a passaporte diplomático, julgamento em tribunais especiais, Auxílio Moradia, dois meses de férias por ano, entre outros. O mais kafkiano desses privilégios legais é justamente o poder de legislar… em causa própria.

No entanto, uma jovem deputada esclareceu aos brasileiros que políticos e seus familiares sofrem sim de terríveis preconceitos. Principalmente os políticos envolvidos em corrupção. E essa deputada tem toda a autoridade para tratar do assunto. Ela é a filha do ex-presidente da Câmara C, notório por ter conseguido derrubar a president@ D, quando esta não cedeu à chantagem de apoiá-lo contra as denúncias de corrupção. Ele Cunhou o termo tchau, querida, que serve do título ao livro que escreveu na prisão. D caiu e C caiu logo após, sendo condenado nas várias ações contra ele à uma soma de mais de 55 anos de prisão. Como em todos os roteiros de A Casa do Baralho, ele, como deputado condenado, não cumpriu nem 10% e foi liberado. Essa é outra discriminação que a classe política vem sofrendo, é expulsa das prisões sem nem ter chance de cumprir metade da pena.

Seja como for, a jovem C sentiu na carne a mudança de status de seu pai e decidiu seguir os seus passos, tornar-se uma deputada e combater no legislativo a terrível discriminação que ele e ela sofreram, só por ele ter desviado para o próprio bolso uma quantia monumental de dinheiro. Imaginem o impacto sobre uma jovem, ver seis carros de luxo da família serem confiscados pela Justiça no mesmo dia. É trauma para uma vida inteira.  

Uma vez sancionada a Lei, aprovada na Câmara por ampla maioria (apenas os partidos PSOL, REDE, Novo, Cidadania e PC do B votaram contra), não será mais possível xingar político, nem mesmo negar-lhe um emprego na iniciativa privada ou no setor público, sem correr o risco de ser penalizado com multa ou até quatro anos de prisão. É como se fizessem uma lei para criminalizar o futebol, impossível de cumprir.

Seguirá o Senado essa nova modalidade de combate à discriminação inaugurada pela Câmara? Perderá o brasileiro o direito de avacalhar seus políticos, aqueles que ele mesmo elege a cada quatro anos? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Vingança da Vacina

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

O ex-presidente B acordou após uma noite de sonhos intranquilos com a sensação de que o pesadelo no qual tentava, desesperadamente, proteger suas hemorroidas em uma cela escura, estava prestes a desembarcar do universo onírico para a vida real. Um bando de policiais com mandato de busca e apreensão invadiu a sua casa e levou computador, tablets, seu celular e pasmem, seu cartão de vacinação. Antes que fosse algemado correu para telefonar para aliados, políticos, militares, advogados, botando a boca no trombone. Nessas conversas ficou sabendo que seu ex-ajudante de ordens, aquele que tentou reaver as joias sauditas aprendidas pela alfândega antes da fuga presidencial para a terra do tio Trampo, havia sido preso nessa mesma operação, bem como outros assessores do ex-presidente.

No entanto, não se tratava do caso das joias das Arábias. Nem da investigação das fake news. Tampouco tratava-se do atentado à democracia, pelo qual seu ex-ministro da justiça já estava preso. Era um novo escândalo, o da adulteração dos cartões de vacina dele, de sua filha menor de idade, de seus assessores e a mulher de um deles, que viajariam com ele aos EUA na véspera de ele não entregar a faixa presidencial ao governante eleito e despedir-se do foro privilegiado. Como a lei estadunidense exigia comprovante de vacinação para quem entrasse no país, e como o presidente e sua turba preferiam a morte a tomar a vacina (a morte de outros, é claro), resolveram a parada com uma operação extremamente astuta, criando fake cartões de vacinação, forjando documentos e adulterando dados no sistema do SUS, usando para isso o gabinete da presidência. O que mais assustou B, não foi constatar que a PF descobriu a ardilosa fraude, foi o sigilo absoluto da operação policial contra ele. Esta o pegou, literalmente, sem calças. Era um claro sinal que seus comparsas na PF, no Ministério Público e em outros órgãos não tinham mais aquele acesso esperto à informação operacional. Ou continuavam tendo, mas não eram mais seus comparsas.

Logo quando ele se achava mais tranquilo em relação a ser preso e tornou a botar as manguinhas de fora, desfrutando de uma pequena vitória no Agrodoce Show, do qual o ministro de agricultura do presidente L fora desconvidado por sua causa, a PF, em pessoa, invade a sua casa. E ainda por cima apreendem as suas armas.  Levem a Micheque mas não levem as minhas armas!!!, queria ele gritar, mas estava perplexo demais. Acabou não sendo preso, apenas convocado a depor, mas apreenderam também seu passaporte. Droga, pensou ele, falsificar um novo passaporte já é bem mais complicado. Iria ter que fugir para um país do Mercosul. Sentiu-se muito próximo de ver seu pesadelo premonitório se concretizando. Uma onda de autocomiseração inundou seu peito, ameaçou embargar-lhe a voz.

O que encontrarão no celular do ex-presidente, candidato a futuro presidiário? Será que ele, que escapuliu de responder pela morte de milhões de brasileiros, atrasando ao máximo a vacinação, acabará caindo por um falso atestado da vacina? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

O Plano Perfeito

Filme de Spike Lee – EUA, 2006

Tá aí um filme que faz jus ao nome. Poderia se chamar também o roteiro perfeito. É um dos meus favoritos entre os filmes do frenético Spike Lee, junto com Faça A Coisa Certa e A Última Noite. Sua trama ardilosa junta-se a Golpe de Mestre de George Roy Hill e Nove Rainhas de Fabian Bielinski na tradição de enredos genialmente enganosos. Mas diferente dos dois filmes, o “buraco” do golpe de O Plano Perfeito, é mais embaixo, ou melhor, mais em cima.  Não é um filme sobre pequenos vigaristas e seus truques, é algo bem mais complexo cujas origens remontam ao Holocausto.

Vários elementos do assalto ao banco de O Plano Perfeito foram “levados” pela série espanhola La Casa de Papel (2017) que fez tremendo sucesso na Netflix. Mas não é apenas o roteiro inteligente de Russel Gewirtz que sustenta O Plano Perfeito. A abertura do filme, com um dos protagonistas falando para a câmera e quebrando a quarta parede (enquanto se encontra recluso entre quatro paredes), já indica que este será um filme diferente. Os atores Christofer Plummer, Denzel Washington, Judie Foster, Clive Owen e Chiwetel Ejiofor dão vida a personagens que facilmente poderiam ter escorregado em estereótipos. A direção frenética de Spike Lee junto ao ritmo da música bolliwoodiana Chaya Chaya e da trilha original de Terence Blanchard completam o cenário de um envolvente filme de ação/reflexão. Apesar de quase todo o filme se desenrolar em uma locação, o banco e suas adjacências, Spike consegue trazer para dentro da obra sua cidade fetiche, Nova York, como uma grande babilônia multiétnica. E de maneira sutil, mas bem visível, faz uma homenagem ao 11 de setembro em um dos planos.

A montagem do filme também é brilhante, principalmente a quebra da linearidade, intercalando o assalto com a inquirição de reféns e suspeitos pós-assalto, o que aumenta o mistério sobre o inusitado “roubo” do banco. A direção de fotografia contribui para essa quebra diferenciando textura e predominância de cores entre as duas situações, usando nas cenas de interrogatório um filtro Low Contrast que suaviza as altas luzes, criando um clima quase irreal, dessaturado, em contraste com as cenas do banco.  Além da já mencionada engenhosidade do enredo, o roteiro se destaca também pela qualidade dos diálogos.

O Plano perfeito pode ser visto na Netflix, mas somente até o dia 15/05/23. Se você não viu, vá e veja, se você já assistiu, vale a pena ver de novo.

A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Ex-cunhada.

“Você pode deixar o baixo clero, mas o baixo clero nunca deixa você.” Severino Claudicante.

O presidente B teve mais uma noite de sobressaltos. Sonhou com um castelo de cartas. Era uma peça composta de dois baralhos que alguém montara em sua mesa e, ao mesmo tempo, era o palácio de onde governava. Olhava admirado para aquela construção imponente e se surpreendia com a fragilidade do equilíbrio que a sustentava. Uma coceirinha, um desejo angustiante de dar um peteleco e ver a casa desmoronar começou a crescer dentro dele.  Sabia que precisava se controlar. Afinal, era ele quem estava no topo. Se aquilo dali ruísse… Virou-se de costas para a pirâmide que deu tanto trabalho montar e ouviu uma voz rouca bafejando em sua nuca: não adianta, companheiro, a casa caiu!

Esse era também o sonho de muitos brasileiros, mas no caso de B, tratava-se de um pesadelo. Acordou assustado, tentando identificar a voz que lhe parecia ser ora do ex-presidente L, ora do seu ministro da fazenda, o Posto Ipiranga. Era uma profecia? Um aviso? Uma ameaça? Chamou o general EstouaquiParaObedecê-lo, pediu um copo d’água com açúcar. Este prontamente apareceu com uma latinha de leite condensado, com dois furinhos milimetricamente opostos. Ele gostava de seu ex-ministro da saúde. Era um pau-mandado com iniciativa. Uma combinação rara de se encontrar num indivíduo. Deu a primeira sorvida na lata e desabafou para seu assessor, não sem antes revistá-lo como prevenção de um possível grampo.

ParaObedecê-lo se retorcia todo durante a revista, sensível as cócegas do presidente. Cuidava para não fazer barulho e acordar a Micheque que dormia ao lado, sonhando com o Feiroz depositando em sua conta corrente.

— Caralho — sussurrou o mandatário — e eu pensei que maio foi um mês ruim. A CPI tá nadando de braçada, parece que abriu a porteira pra boiada das denúncias. Os protestos nas ruas tão cada vez piores. Ninguém mais quer andar comigo de moto. E já é a terceira noite que eu sonho que tudo isso daqui é uma casa de baralho e que a casa cai.

— Que é isso, Presidente? Só Deus tira o senhor daqui. É só dar mais uns pixulé pro Centrão, outro pra nós milicos, que o senhor tá seguro.

— Que pixulé o quê, os caras querem é o filé. Tive que me livrar de ti, do Amazon is for Salles, do Desonesto Sabujo, pra liberar esses ministérios pros sanguessuga. E em vez de largarem do meu pé, a coisa só tá apertando mais.

— O senhor tira de letra, Presidente. Como fez quando pegaram o Feiroz, quando calaram a Sara Inferno, quando queriam apreender seu celular, quando liquidaram o cabeça do Escritório do Crime, quando o Moro num País Tropical denunciou o aparelhamento da PF, quando o STF liberou o vídeo da reunião ministerial, quando a Amazônia queimou, quando o Brasil passou de 500 mil mortos, quando investigaram a rachadinha do Zero à esquerda Um…

— É isso!!! – saca o presidente. – A rachadinha. Essa é a causa do pesadelo! Que humilhação eu cair desse jeito.

— Como assim?

— Isso aqui é o Brasil, correto?

— Positivo, Presidente. Hemisfério Sul.

— E o Brasil é a Casa do Baralho, tô certo?

— Sempre, Presidente.

— Só no Brasil um presidente que resistiu a tudo que tu falou, mais a propina da Covaxin, a insistência na Cloroquina, a queda do Trampo, a renúncia dos comandantes militares, a acusação dos irmãos Ciranda, o ataque da imprensa-lixo, o super pedido de impeachment, o mimimi pro tribunal de Haia, sem falar da fakeada no aparelho abdominal, vai acabar caindo por causa da… cunhada.

— Ex, Presidente.

— Como assim ex-presidente? Ainda não caí!!!

— Deus nos livre. O ex era pra cunhada, Presidente.

Realizar-se-á o pesadelo de B (e sonho de tantos brasileiros)? Será antecipado o fim da atual temporada da série mais caótica do século? Não perca, nos próximos (e derradeiros?) episódios da Casa do Baralho!

A Casa do Baralho, episódio de hoje: A copa da América é nossa!

Aviso: esta série é uma obra coletiva, escrita por vários roteiristas. Alguns se conhecem, outros não. O fato é que um não sabe o que o outro está fazendo.

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

Maio foi  malo para o capitão de artilharia, o presidente B.

A oposição finalmente entendeu o novo “normal” na política brasileira e logrou empurrar a CPI da Covid goela abaixo do presidente do senado que não via, até então, “o momento como propício”. Emplacou ainda os cargos de presidente, vice e relator, deixando os senadores governistas – em minoria – a ver navios. Dia após dia, com transmissão ao vivo para todo o Brasil, foi escancarada a política do governo de sabotar o combate à pandemia para infectar todo mundo e liquidar logo com o vírus, junto com boa parte da população. Não é ainda um processo de impeachment, mas é uma exposição que faz o presidente sangrar. B ficou tão perturbado, que esqueceu de comprar presente para o dias das mães. Em vez disso, foi passear de moto no Rio de Janeiro.

A polícia federal também aprendeu a lidar com o novo “normal” da intromissão palaciana. Mesmo com o superintendente do Amazonas afastado do cargo após denunciar o ministro do meio ambiente Amazon-is-for Salles, a PF continuou a investigar na surdina, driblou o engavetador geral da república e foi direto ao STF. A procuradoria geral da república, com o rabo entre as pernas, foi obrigada a aceitar a notícia-crime contra o ministro. Denunciado por tráfico de influência no tráfico de madeira ilegal, crime que envolve o Ibama e o escritório de advocacia no qual é sócio com a mãe, For Salles é o primeiro investigado de corrupção nas entranhas do governo B.

Como se não bastasse tudo isso daí, o feitiço virou contra o feiticeiro no tocante às eleições. O presidente, em permanente campanha desde sua posse, conseguiu mais uma vez pautar o debate no Brasil com as eleições de 2022, como se não houvesse pandemia, desemprego, ano letivo paralisado, economia afundando e fome. O anacrônico voto impresso e o resultado do pleito distante viraram temas recorrentes, como se as eleições fossem para amanhã. B  se divertiu muito com a manobra diversionista, subindo em palanques e provocando aglomerações. Eis que em maio as pesquisas de intenção de voto apontaram para a vitória de seu arqui-inimigo L, de forma peremptória. B sentiu as hemorroidas latejarem.

O pior, no entanto, ainda estava por vir. E aconteceu no sábado, dia 29. Centenas de milhares de brasileiros foram às ruas, deixando de lado o dilema como protestar sem aglomerar, ardil que entregava as ruas praticamente nas mãos dos Bapoiadores. Percebendo que a letalidade de um negacionista no poder era maior que a do vírus, o povo arrebentou o nó e tomou as cidades em protestos maciços. Foi de arrepiar, e não só as hemorroidas presidenciais.

Mas B é um campeão. Medalha de ouro em rachadinhas, artilheiro de gols de placa com mergulho de barriga, unificador dos cinturões nas categorias Exterminador do Futuro, do Presente e do Passado, recordista na troca de ministros da saúde em plena pandemia, é imbatível, também, na modalidade desvio da atenção. Com a CPI da Covid apertando, a PF encurralando, L crescendo nas pesquisas e o povo nas ruas exigindo o seu impeachment,  o que ele faz?  Traz a Copa América para o Brasil.

Embarcará o país nessa nova cortina de fumaça? Erguerá o presidente, ao final do torneio, mais essa taça? Ou essa copa acabará sendo para B o que a copa do mundo foi para a ex-president@ D? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!

Presidente

Filme de Camilla Nielsson – Dinamarca/EUA/Noruega – 2021.

Em 2013, o Zimbábue promulgava uma nova constituição. Governado pela mão de ferro de Mugabe, desde sua independência em 1980, o país via na carta magna um passo enorme rumo à democracia e a tão almejada alternância no poder. A nova constituição limitava o mandato presidencial a um período de cinco anos com possibilidade de uma única reeleição. A regra, porém, passaria a valer a partir da eleição seguinte e Mugabe, portanto, continuava no poder. A cineasta dinamarquesa Camilla Nielsson foi ao país africano cobrir o processo constituinte, cobertura que resultou no documentário Democrats, seu primeiro longa. O filme fez boa carreira em festivais, mas foi proibido de exibição no Zimbábue.

Em 2017, o presidente foi preso pelo exército num golpe orquestrado pelo seu vice Emmerson Mnangagwa. Mugabe então negociou a liberdade em troca da renúncia e o vice assumiu, prometendo convocar eleições democráticas e transparentes para o ano seguinte.

Camilla voltou ao país em 2018 para pleitear na justiça a liberação de seu filme. Conseguiu bem mais do que isso. Em meio ao turbilhão pré-eleitoral, dez anos após o último pleito cercado de violência e fraude, um dos participantes de Democrats sugeriu que filmasse a disputa entre o presidente Mnangagwa, da União Nacional Africana do Zimbábue (partido de Mugabe), e o jovem Nelson Chamisa, do Movimento pela Mudança Democrática (MDC). A grande questão que pairava no ar não era quem seria o vencedor, mas se o pleito seria conduzido de maneira limpa, como prometera Mnangagwa. Presidente é a resposta a essa pergunta.

O documentário é articulado como um thriller. Apesar de ser um puro sangue da escola do documentário direto (apresentação dos eventos filmados com a mínima intervenção da câmera e do diretor), a carga dramática parece a de um filme de ficção. A equipe em campo era mínima (Henrik Bohn Ipsen como diretor de fotografia e operador de câmera e a diretora, que também operava o som), num formato que remete ao jornalismo. No entanto, o olhar e a construção narrativa do filme vão muito além da reportagem. A edição é fundamental nessa construção e na dinâmica avassaladora. Nos 130 minutos que passam voando, Presidente apresenta um mosaico de personagens instigantes, um vislumbre de uma nação multicultural com 16 idiomas oficiais, conflitos políticos, éticos e morais e a descoberta de um crime. Ingredientes captados em três meses intensos de filmagem, acompanhando a disputa eleitoral, o resultado da votação e seus desdobramentos.

Presidente levanta questões complexas, algumas apresentadas explicitamente, outras provocadas nas entrelinhas. Em mim despertou a reflexão sobre o quanto o modelo de democracia representativa forjado no ocidente se encaixa em outras culturas e sociedades, e o quanto esse modelo faz parte do pacote da herança do colonialismo europeu e por ele é aviltado. Camilla comentou em entrevista que, apesar do sucesso do filme, sente-o como uma crônica do fracasso. Fracasso que atribui fortemente à atuação da comunidade internacional e seus observadores, que acabaram legitimando o processo. Comunidade na qual ela, como cineasta europeia filmando na África, se reconhece como parte. 

Presidente ganhou a competição internacional do festival É Tudo Verdade e o Prêmio Especial do Júri por Cinema Vérité no festival de Sundance, em 2021. Distribuido pela Cinephil, em breve deve marcar presença nas telas.

Collective

Filme de Alexander Nanau – Romênia – 2019.

Collective, indicado ao Oscar em duas categorias (melhor documentário e melhor filme internacional – o antigo filme estrangeiro), tem dois pontos de ligação com o Brasil. Um deles tem a ver com a carreira do filme: ele foi o vencedor do Festival É Tudo Verdade (2020), festival internacional de documentários realizado no Brasil, que qualifica o vencedor a disputar o Oscar. O outro elo tem a ver com seu ponto de partida: uma tragédia na danceteria Collective em Bucareste, muito semelhante ao incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ocorrido dois anos antes (2013). A tragédia no Brasil teve proporções muito maiores em números de vítimas (242 mortos e 680 feridos) e muito menores na apuração das responsabilidades e na reação da sociedade. Na Romênia, o incêndio que matou 27 jovens na noite da tragédia e outros 37 nos meses seguintes (além de um grande número de feridos), foi o estopim para um protesto maciço contra a corrupção que impregnava o sistema. Os desdobramentos políticos da tragédia e das intensas manifestações de rua culminaram nas renúncias do prefeito e do primeiro-ministro. Um gabinete de tecnocratas, composto por ministros que não eram oriundos de partidos políticos, foi nomeado interinamente até as eleições parlamentares. A sociedade voltou a acreditar que a pressão popular poderia ser um agente de mudanças. Esse clima foi o catalisador do filme.

O documentário está articulado em três eixos. Na primeira parte, acompanha o trabalho do jornalismo investigativo conduzido por Catalin Tolontan, redator-chefe da Gazeta Sporturilor (sim, a investigação partiu de um jornal esportivo, a partir da denúncia de duas fontes internas). Suas revelações e questionamentos acabam derrubando o ministro da Saúde interino e Collective passa a seguir de perto o trabalho do novo ministro. Em paralelo, ao longo de toda a obra, a equipe acompanha os sobreviventes e familiares das vítimas do incêndio. Essa estruturação em torno de imprensa, governo e sociedade cria um painel vigoroso sobre democracia e poder, que extrapola a realidade romena e fala sobre o mundo atual. Que controle temos sobre os representantes que elegemos e qual o controle que eles exercem sobre as nossas vidas? Essa é a grande reflexão de Collective.

Nanau é um adepto do cinema direto. A câmera registra os acontecimentos com o mínimo de interferência. Não há depoimentos, muito menos narração. Em Collective, um texto curto nos créditos iniciais expõe o contexto. A partir daí é puro cinema direto. O ponto forte do filme é o grau de penetração que sua equipe conseguiu nos bastidores. As cenas das reuniões entre os jornalistas e seus informantes são impressionantes, assim como as discussões no gabinete do novo ministro. É espantoso como lograram ter esse acesso e filmar coisas que normalmente permanecem em off. Para o diretor, era fundamental atingir esse nível de inserção para conferir autenticidade ao filme e ao trabalho dos jornalistas investigativos. Para os encontros entre jornalistas e informantes, pessoas que corriam risco de morte se fossem identificadas, Nanau era avisado em cima da hora e tinha 5 minutos de conversa com a fonte para conseguir autorização para filmar. Se não conseguisse, não filmavam. Comprometeu-se a manter segredo sobre suas identidades até o lançamento do filme, e mostrá-lo antes a cada informante para obter a autorização final, algo extremamente arriscado do ponto de vista da produção. Alexander comenta que teve sorte de deparar-se com pessoas corajosas e que realmente almejavam mudanças, ainda que arriscando carreiras e vidas.

O cinema direto de Collective joga o espectador no meio do turbilhão político que marcou o período, e o torna parte da investigação, como se desvelasse junto com os jornalistas o que está acontecendo. As ações da investigação e apuração se desenrolam aos nossos olhos com a dramaticidade e suspense de um thriller.

Para atingir essa qualidade foram mais de cem diárias de filmagem num período de 14 meses, mais de 400 horas de material gravado. Muita coisa interessante ficou de fora, como a história do vocalista que se apresentava na hora do incêndio, o único sobrevivente de sua banda. O filme foi lançado ainda em 2019 e circulou em festivais um pouco antes de a Covid-19 parar tudo. Voltou a circular online e chegou à indicação dupla para o Oscar. Com a pandemia, o tema saúde pública e corrupção ganhou relevância mundial, reforçando ainda mais o impacto de Collective, um ótimo documentário político-investigativo.

Casa do Baralho, episódio de hoje: Feliz 2020!

baralho

Finais de ano são propícios a retrospectivas, a análises, a balanços de erros e acertos. O presidente, em algum momento de seu descanso na praia baiana de Aratu, distante de Brasília e da primeira-dama, deve ter tido seus momentos de reflexão sobre este primeiro ano de governo.

Ninguém pode dizer que fui um presidente que foge da briga, reflete ele com seus botões e um copo de uísque na mão. Briguei com a imprensa, o carnaval, o cinema, a educação, os ambientalistas, as ONGs, os conselhos, os deputados da oposição e da situação. Não poupei nem meus aliados: fritei o Fruta, a Coyce e o Mimimiano; dei um pé na bunda de quatro ministros, de todos os superintendentes do Ibama, do diretor da FUNAI e do diretor do INPE que foi bater boca comigo depois de divulgar dados sobre o desmatamento na Amazônia. Enquadrei meu vice que tava se achando, só por ter patente de general. Aí teve a briga com meu partido. Se rebelaram só porque tentei derrubar a cúpula e botar minha família no controle. Acabou em divórcio, mas vida que segue, sem magoas, vou criar a minha própria sigla e acabar com a raça deles. Quando visitei o Trampo (claro que com ele eu não ia brigar), os imigrantes brasileiros se ofenderam porque chamei eles de vagabundos. Nessa daí tive que me desculpar, o Olavo me deu a letra que quase todos tinham votado em mim. Tudo bem, não dá pra vencer todas. Mas em Junho dei um gancho (de direita) no presidente da OAB que tava se metendo nos meus assuntos jurídicos. Em outubro, declarei guerra ao governador e à polícia carioca. Tão malucos? Investigar os meus filhinhos? Quis declarar guerra também contra a Venezuela, mas foi bem antes, mal tinha ocupado o trono, e o exército não deixou. Isso não quer dizer que fugi da briga no ringue internacional: A Merdel, a Brochelet, o Maucron e a esposa dele, sentiram o peso dos meus golpes baixos; mandei a primeira-ministra da Noruega enfiar o dinheiro do fundo pra Amazônia lá no fundo. Chamei na chincha o Di Caprio (adoro brigar com atores, dá muito ibope) e aquela pirralha da Greta levou um esculacho, imagina, com 16 anos ser escolhida a personalidade do ano pela Time.

Refletindo assim, B se dá conta que seu primeiro ano de governo mais parece a programação do canal Combate. Os cubos de gelo no copo parecem olhar para ele e questionar: e os resultados? Quais foram as realizações extraordinárias nesse primeiro ano? Foram muitas, retruca ele. Com certeza, segue a voz gelada, o senhor é o primeiro presidente, em toda a história do Brasil, que conseguiu ficar sem partido durante o mandato. Aliás, quase perdeu o mandato, já no quinto mês de governo. Implementou a reforma política da Cosa Nostra: as famílias no lugar dos partidos. Don Corleone ficaria orgulhoso. Logrou blindar o brasileiro do terrível mal da indignação. Depois de tanta fake news e barraco, ninguém mais perde o sono por queimadas na Amazônia, um escândalo no governo ou o atentado contra um programa de humor. E a cereja do bolo foi dar um basta em todos os indiciamentos e prisões de políticos nesse primeiro ano de seu governo. Parece o tal pacto para “estancar a sangria” que T não conseguiu, mas o senhor atingiu com louvor. Pode até declarar que acabou com a corrupção.

O presidente encara o gelo insolente derretendo no copo, percebe que precisa mesmo de um descanso. Adormece com Bruna Surfisitinha na tela, filme que trouxe em segredo para assistir na solidão da Bahia, e acorda renovado. Passados dois dias, porém, cansa da paz e do sossego do litoral, anseia por uma boa escaramuça. Decide antecipar a volta para Brasília. De toda a reflexão lembra apenas da ideia genial de poder declarar que acabou com a corrupção.

Tornará o Brasil a ser lavado à jato? Seguirá 2020 o ritmo quente de 2019? Logrará B manter sua temporada na Casa por mais três anos? Não perca, nos próximos episódios da Casa do Baralho.

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