Filme de Natalia Berinstain, México 2022
Ruído não é um filme fácil de assistir. Ele está tão distante de uma obra de entretenimento quanto os desaparecimentos no México estão distantes de uma solução. É um filme seco, cruel, incômodo, como a experiência que sua protagonista atravessa na jornada caótica em busca da filha, sumida há nove meses.
Nove meses, o tempo de uma gestação. Não é um período aleatório que os roteiristas escolheram para o desaparecimento de Ber. Ele remete ao laço forte da maternidade, força que moveu muitos anos atrás as avós da Praça de Maio, na Argentina, e atualmente move as mulheres mexicanas em busca de seus desaparecidos. Julia tatua em seu braço a mesma tatuagem que sua filha tem, ou tinha. Mais um reforço simbólico da relação mãe e filha e uma maneira simbólica também de se colocar dragonas, ou se pintar para a guerra.
Ao partir para a guerra, ou seja, para a ação, Julia descobre os caminhos dos coletivos de mulheres. Essa é uma diferença muito grande entre Ruído e vários outros filmes sobre pais procurando seus filhos sequestrados, desapontados com a inércia das autoridades. A obra de Natalia constrói uma jornada individual que se insere no coletivo. Julia participa, entre outras atividades, de um mutirão das rastreadoras, mulheres que se especializaram em localizar covas coletivas clandestinas.
Toda essa organização nasce da omissão, negligência e corrupção do poder público, realidade que o filme retrata magistralmente, criando um quadro assustador da ligação dos órgãos governamentais, a polícia especialmente, com o crime que ela deve combater. Um terceiro fator nessa jornada é a imprensa, principalmente a imprensa investigativa. A jornalista Abril Escobedo (Teresa Ruiz) conduz Júlia pelos labirintos de sangue, dor e morte, fazendo o papel que a imprensa oficial se omite de fazer. Mais uma heroína feminina nessa narrativa trágica.
A diretora comenta em entrevista que nos casos de desaparecimento a vítima principal é, obviamente, a pessoa desaparecida. Mas a violência é praticada também contra pessoas no entorno dessa vítima. Muitas famílias acabam se desintegrando pelas dúvidas sobre o destino da pessoa desparecida, pela impotência, pela falta de um desfecho, da possibilidade inclusive de praticar o rito de enterrar um corpo. O caráter pandêmico dos desparecimentos que assolou o país nas últimas décadas é que a motivou a fazer o filme, focando nos familiares das vítimas, eles também vítimas.
A sequência impactante que abre o filme escancara esse caráter pandêmico e dá um vislumbre da jornada que transita entre o individual e o coletivo. Julia é representada pela atriz Julieta Egurrola, mãe da diretora. O pai e o irmão de Natalia também são atores e trabalham no filme como pai e irmão da vítima. Seus personagens, Arturo e Pedro, assim como a protagonista, tem os nomes próprios dos atores.
A mim, o filme lembra Antigona, a tragédia de Sófocles (442 AC), e outra obra difícil e muito impactante que trata dos assassinatos de mulheres em Sinaloa, o livro 2666 de Roberto Bolaño. Ruído e 2666 são obras de denuncia, mas sobretudo de espanto frente a uma violência inexplicável. Dois fenômenos distintos, mas profundamente ligados, sintomas de uma sociedade gravemente enferma. Em Ruído há ainda um leve sopro, uma pequena ponta de esperança na organização coletiva. Mas a dor, o medo e o terror são ainda maiores.
O filme pode ser visto na Netflix.