Presidente

Filme de Camilla Nielsson – Dinamarca/EUA/Noruega – 2021.

Em 2013, o Zimbábue promulgava uma nova constituição. Governado pela mão de ferro de Mugabe, desde sua independência em 1980, o país via na carta magna um passo enorme rumo à democracia e a tão almejada alternância no poder. A nova constituição limitava o mandato presidencial a um período de cinco anos com possibilidade de uma única reeleição. A regra, porém, passaria a valer a partir da eleição seguinte e Mugabe, portanto, continuava no poder. A cineasta dinamarquesa Camilla Nielsson foi ao país africano cobrir o processo constituinte, cobertura que resultou no documentário Democrats, seu primeiro longa. O filme fez boa carreira em festivais, mas foi proibido de exibição no Zimbábue.

Em 2017, o presidente foi preso pelo exército num golpe orquestrado pelo seu vice Emmerson Mnangagwa. Mugabe então negociou a liberdade em troca da renúncia e o vice assumiu, prometendo convocar eleições democráticas e transparentes para o ano seguinte.

Camilla voltou ao país em 2018 para pleitear na justiça a liberação de seu filme. Conseguiu bem mais do que isso. Em meio ao turbilhão pré-eleitoral, dez anos após o último pleito cercado de violência e fraude, um dos participantes de Democrats sugeriu que filmasse a disputa entre o presidente Mnangagwa, da União Nacional Africana do Zimbábue (partido de Mugabe), e o jovem Nelson Chamisa, do Movimento pela Mudança Democrática (MDC). A grande questão que pairava no ar não era quem seria o vencedor, mas se o pleito seria conduzido de maneira limpa, como prometera Mnangagwa. Presidente é a resposta a essa pergunta.

O documentário é articulado como um thriller. Apesar de ser um puro sangue da escola do documentário direto (apresentação dos eventos filmados com a mínima intervenção da câmera e do diretor), a carga dramática parece a de um filme de ficção. A equipe em campo era mínima (Henrik Bohn Ipsen como diretor de fotografia e operador de câmera e a diretora, que também operava o som), num formato que remete ao jornalismo. No entanto, o olhar e a construção narrativa do filme vão muito além da reportagem. A edição é fundamental nessa construção e na dinâmica avassaladora. Nos 130 minutos que passam voando, Presidente apresenta um mosaico de personagens instigantes, um vislumbre de uma nação multicultural com 16 idiomas oficiais, conflitos políticos, éticos e morais e a descoberta de um crime. Ingredientes captados em três meses intensos de filmagem, acompanhando a disputa eleitoral, o resultado da votação e seus desdobramentos.

Presidente levanta questões complexas, algumas apresentadas explicitamente, outras provocadas nas entrelinhas. Em mim despertou a reflexão sobre o quanto o modelo de democracia representativa forjado no ocidente se encaixa em outras culturas e sociedades, e o quanto esse modelo faz parte do pacote da herança do colonialismo europeu e por ele é aviltado. Camilla comentou em entrevista que, apesar do sucesso do filme, sente-o como uma crônica do fracasso. Fracasso que atribui fortemente à atuação da comunidade internacional e seus observadores, que acabaram legitimando o processo. Comunidade na qual ela, como cineasta europeia filmando na África, se reconhece como parte. 

Presidente ganhou a competição internacional do festival É Tudo Verdade e o Prêmio Especial do Júri por Cinema Vérité no festival de Sundance, em 2021. Distribuido pela Cinephil, em breve deve marcar presença nas telas.